CRÍTICA | Carne Trêmula

Direção: Pedro Almodóvar
Roteiro: Pedro Almodóvar, jorge Guerricaechevarría e Ray Loriga
Elenco: Javier Bardem, Francesca Neri, Liberto Rabal, entre outros
Origem: Espanha / França
Ano: 1997

Uma cartela descrevendo o estado de exceção vigente na Espanha franquista abre o filme de Pedro Almodóvar (Ata-me), levando o espectador até ruas periféricas e sombrias de Madri, onde Isabel (Penélope Cruz) dá a luz ao seu filho - mais especificamente num ônibus em direção ao hospital. Esse nascimento peculiar e espontâneo sob ornamentos brilhantes da cidade se mescla justamente com o período cronológico em que a ditadura de Franco vai minguando até a transição do país para uma democracia parlamentar. Imediatamente figuras públicas tentam surfar na popularidade do evento e, tanto Isabel quanto seu recém-nascido, recebem um passe vitalício da empresa de ônibus da cidade, como uma promessa de livre acesso para os tantos mundos que Madri comporta.

Porém, em uma elipse impiedosa, já estamos acompanhando num piscar de olhos o filho crescido com 20 anos, Victor Plaza (Liberto Rabal), vagando sem rumo pelas ruas agora caóticas e efervescentes da cidade. Ele liga para Elena (Francesca Neri), uma mulher abastada com quem se relacionou uma semana antes, mas que já não tem qualquer lembrança dele. Irredutível, ele invade o apartamento dela, disposto a se provar um amante digno. Paralelamente, dois policiais dirigem pelas mesmas ruas. Um deles, Sancho (José Sancho), comenta desgostoso sobre os transeuntes jovens e suas imoralidades ao mesmo tempo em que se embriaga após ter agredido a esposa Clara (Ángela Molina) por suspeitar de uma traição. O parceiro policial, supostamente o elo razoável da dupla, David (performance refinadíssima de Javier Bardem), tenta com sutilezas conter o colega, cada vez mais enfurecido e disposto a descontar sua mágoa no primeiro alvo que houver.

El Deseo

O cruzamento de todas essas histórias culmina na prisão de Victor, a perda do movimento das pernas de David e seu matrimônio com Elena, após tê-la salvado. Em mais uma elipse tão súbita quanto espertinha, a imagem abandona um David baleado apenas para encontrá-lo em seguida como um bem sucedido jogador de basquete em cadeira de rodas. Conforme o filme prossegue, esses personagens vão se reencontrando e, se não expondo emoções, extraindo elas da outra pessoa.

Essa nova Madri que vai sendo revelada por Carne Trêmula (Carne Trémula) recuperou sua vitalidade, consagra os que considera vitoriosos, mas permanece indiferente aos marginalizados como Isabel, agora apenas um túmulo incapaz de responder às angústias do filho, e Victor, morando num sobrado devorado pela sombra dos grandes edifícios vizinhos. O mundo que Almodóvar retrata é uma explosão tamanha de paixões irreprimíveis entornando melodramas novelescos que a própria razão lógica parece se curvar às vontades do desejo. Em certo momento, Victor passa a viver um amor intenso com Clara, mas também revela a Elena que seu plano inicial era se vingar ao se tornar o amante prometido de anos atrás e, enfim, seduzi-la. Conforme enuncia sua fantasia, é como se ele fosse capaz de transmutar a própria realidade naquela de seus prazeres apenas pela força desnuda de sua vontade.

E assim os personagens vão se movendo pela cidade, apertando e contorcendo o mundo em um ato sexual, agarrando com culpa, malícia e amor a carne fresca das próprias vidas. Sancho e seu ciúme, Clara e sua ânsia por liberdade, o verdadeiro caráter de David vindo a tona, o remorso de Victor oferecendo uma saída para os arrependimentos de Elena. E não são muitos cineastas que, como Almodóvar, mesmo fabricando sequências de sexo tão performáticas e lúdicas, com seus quadros únicos e slow motions, encontram um realismo sincero na composição de toda nudez. Em especial a naturalidade com a qual o corpo do homem é apresentado, evoca essa mistura entre a imaginação masculina de si e também suas próprias vulnerabilidades.

El Deseo

Eventualmente as motivações dos personagens soam inconsistentes - até mesmo contraditórias - porque a ordem do sentido racional é completamente despida pelo comando do sensorial, os domínios do toque reinando na escolha de todos os caminhos.

Ótimo


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