Análise de Cinema | Precisamos Falar Sobre o Kevin


Atenção: Esse post contém spoilers que relatam alguns detalhes da trama do filme. Caso não tenha assistido e se incomode com isso, sugiro que leia apenas após assisti-lo ;)

Assisti recentemente a Precisamos Falar Sobre o Kevin, filme dirigido por Lynne Ramsay e estrelado por Tilda Swinton, John C. Reilly e Ezra Miller. A trama conta a vida de Eva, uma mãe que abdica de suas ambições e prazeres para dar a luz a Kevin, filho do qual a mesma nunca conseguiu se identificar ou criar qualquer intimidade. Ao completar 16 anos, o garoto comete uma chacina no colégio em que estuda, fazendo com que sua mãe viva um dilema perturbador, dividida entre a culpa e o amor incondicional pelo filho. Um drama/suspense soturno e, por vezes, difícil de se assistir, tamanha a brutalidade que o ser humano pode cometer, especialmente por se assemelhar com tantas histórias reais que acontecem pelo mundo contemporâneo.

O que mais chamou minha atenção na direção de Ramsay foi a utilização da cor vermelha, que permeia toda a obra. A diretora brinca com a cor (sempre muito viva em tela, em contraste com a fotografia pastel) fazendo uma associação direta com a culpa que a protagonista carrega. Ironicamente, logo no primeiro momento do filme, Eva aparece em raríssima cena de diversão em La Tomatina (tradicional festa espanhola em que os participantes atiram molho de tomate um nos outros). A cena, no entanto, intensifica a viscosidade e o som do alimento sendo atirado, o que traz uma certa repulsa ao espectador. Sentimento que acompanhará a cor vermelha ao longo do filme. Além disso, como mostra o quadro abaixo, a protagonista aparece coberta de molho de tomate e carregada como uma mártir, papel que a mesma  - de certa forma - acaba exercendo durante obra.


A trama transcorre e em certo momento observamos Eva fazendo compras em um supermercado qualquer. Observem nos frames abaixo. A protagonista aparece andando sozinha pelo corredor, num ambiente sem vida, sem cores predominantes, demonstrando a solidão e depressão que carrega. A cena transcorre, e ela acaba avistando a mãe de uma das vítimas de seu filho, fazendo com que automaticamente se esconda no corredor ao lado, evitando qualquer tipo de contato. Nesse momento a diretora, de forma interessante, enquadra a moça em meio a dezenas de latas de molho de tomate, fazendo uma associação clara, e óbvia, a abertura do filme, e a imensa culpa (novamente) que carrega.


Outra associação interessante feita no filme é com relação ao segundo filho do casal, no caso, a garotinha Celia. A menina é o perfeito oposto de Kevin, carinhosa, simpática, amável. Isso é mostrado também em imagem ao espectador. Observem na próxima captura o quarto da caçula, com a cor amarela predominante (remete a vida, bondade) e diversas outros tons coloridos (nunca o vermelho). Ali é o porto seguro de Eva.


No decorrer da narrativa, por conta de um "acidente", Celia acaba perdendo um dos olhos,  causando uma ruptura na relação de toda a família, visto que a garotinha estava aos cuidados de Kevin quando tudo aconteceu. O filme estabelece essa questão de forma inteligente. O diretor em momento algum mostra a cena da fatalidade, mas através de simbolismos, deixa claro que a suspeita do espectador e de Eva não é infundada. Kevin certamente é responsável pelo que o ocorreu com sua irmã mais nova. Em um primeiro momento, ao conversar sobre o ocorrido em um almoço com os pais, Kevin aparece comendo (de forma repulsiva) uma fruta que muito se assemelha com um glóbulo ocular. Ao ser questionado de seu gosto pelo alimento, o garoto responde que o adquiriu recentemente.


E se isso não é o suficiente para deixar claro ao espectador o culpado pelo "acidente", podemos notar, nos quadros seguintes, novamente a cor vermelha. Se antes a garotinha não tinha qualquer aproximação com a fatídica cor, agora aparece segurando objetos vermelhos em vários momentos. 


No quadro abaixo o exemplo salta aos olhos. A garotinha sentada ao lado dos pais, segurando uma bacia vermelha, em meio a fotografia pastel. Ao fundo, Kevin se retira da casa, portando de seu arco e flechas (vermelhas!), o mesmo instrumento que utilizará para cometer os assassinatos brutais no colégio (segundo quadro abaixo), sadicamente convidando Celia para brincar. Convite negado pela mãe, e pelo espectador, de imediato.



Precisamos Falar Sobre o Kevin é a prova de que existe um porquê de ficarmos perturbados ao assistirmos um filme de suspense ou terror bem feitos. Às vezes podemos não nos atentar a todos esses detalhes ao assisti-los, mas nosso subconsciente capta a mensagem. 

Isso é Cinema!


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Comentários

  1. Interessante a sua análise. Eu tenho uma relação difícil com esse filme porque ele foi completamente diferente do que eu esperava. Entendo que, como obra cinematográfica, ele é um grande trabalho, em termos de direção e de atuação. Porém, como se trata de uma adaptação de um livro para o cinema, senti falta de muitas coisas.
    "Precisamos falar sobre o Kevin" é um dos melhores livros que eu já li em toda a minha vida, é um livro que eu recomendo pra todas as pessoas que pensam em ter filhos um dia, pois a obra não é sobre uma chacina, como pode parecer à primeira vista, mas é sobre maternidade.
    Como leitora que ficou tanto maravilhada quanto estupefata com a obra, fiquei ansiosa quando soube que fariam um filme. Acompanhei as divulgações, da escolha do elenco aos cartazes e fotos promocionais.
    O filme, contudo, me deixou absolutamente frustrada. Muito pouco da história em si foi colocada nas telas, eu me pergunto se quem só assistiu ao filme realmente conseguiu entender tudo. O filme é carregado de simbologia e eu confesso que esperava uma produção mais crua, não mostrando os assassinatos, até porque isso não é mostrado no livro, mas mostrando mais fatos narrados. Também senti muita, mas muita mesmo, falta das cartas de Eva e de outros elementos marcantes do livro que sumiram no filme. Enfim, foi uma maneira de contar a história que simplesmente não me agradou.

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    1. Muito bacana suas considerações, uma pena que não deixou seu nome ou contato para poder me referir a você. Deixe da próxima vez :) Sou da opinião de que quando lemos uma obra literária antes da mesma ser adaptada para as telas, inevitavelmente temos a tendência de preferir o livro ao filme. Ao meu ver, isso se deve ao fato de criarmos a nossa visão do que estamos lendo, quando no filme, temos a visão que o diretor e o roteirista tiveram da obra, o que pode divergir, e muito, da percepção que nós tivemos. É claro que a ideia central é uma só, e não poderia ser diferente, mas sabemos que no Cinema às vezes o lado comercial pode falar mais alto.

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    2. Meu nome é Nyna. Desculpe, eu ia me identificar, mas escrevi o finalzinho com pressa, pois tinha que sair, e esqueci de assinar.
      Como eu disse, foi a maneira de contar a história utilizada pela diretora que não me agradou. Essa mania que alguns diretores têm de abusar da simbologia, sei lá, eu não curto. Acho que diz muito, mas ao mesmo tempo acaba não dizendo nada.
      O livro é bem grosso e tem muitas situações narradas que vão da infância de Kevin até a adolescência e que fazem o leitor, assim como Eva, não se surpreender com o que Kevin faz no final, mas ainda assim ficar chocado. Só pra citar uma, quando Kevin é bebê ele praticamente aterroriza as babás e é uma criança insuportável. No filme, esse aspecto da infância dele é apresentado na cena em que Eva passa por uma obra empurrando o carrinho de bebê e para em meio ao barulho, pois o som da obra suprime o choro que ela não aguenta mais ouvir. De qualquer forma, eu esperava uma narrativa mais como a do livro, seguindo uma sucessão de fatos que pioram ao longo do tempo, para então ficarem mais amenos e em seguida explodirem de uma só vez.
      Sobre o que você disse a respeito do lado comercial, creio que não foi esse o caso, pois o resultado foi um filme pra poucos, que inclusive só chegou na minha cidade muito depois do lançamento, em uma sessão denominada "cinecult" que é mais barata, só passa uma vez por dia, por uma ou duas semanas no máximo.

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    3. Tem razão Nyna, o lado comercial não foi tão explorado nesse filme, a intenção de fato era outra. Também concordo que os simbolismos foram explorados exaustivamente pela diretora, mas achei interessante a forma que a mesma utilizou, ou ao menos não me incomodou. Confesso que me deu vontade de ler o livro depois do seu comentário, sempre acrescenta muito, e a narrativa sem dúvida é interessante. Obrigado por compartilhar a sua opinião =)

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