CRÍTICA | Grave

Direção: Julia Ducournau
Roteiro: Jeremy Gillespie e Steven Kostanski
Elenco: Garance Marillier, Ella Rumpf, Rabah Naït Oufella, Joana Preiss e Laurent Lucas
Origem: França / Bélgica / Itália
Ano: 2016


Quando Grave (Raw) estreou em Cannes e no TIFF, em 2016, virou manchete por um motivo peculiar: muitos dos espectadores passaram mal assistindo o longa, sendo que, no caso do festival canadense, paramédicos tiveram que ser chamados ao local para tratar dos mais sensíveis. Críticas à diretora Julia Ducournau (Mange) também surgiram em peso, questionando a sua audácia de produzir um filme tão vil. Esse tipo de situação não é incomum quando falamos de obras de horror, especialmente aqueles vindos da França (vide A L'Intérieur, Frontier(s) e Martyrs, talvez o filme de horror visual e tematicamente mais brutal já filmado). No entanto, poucas são as vezes em que todo o drama e revolta são coerentes com aquilo que de fato está presente no longa-metragem, sendo que, na maioria das vezes, o furdúncio não passa de histeria coletiva e sugestionabilidade. Esse é o caso de Grave.

A trama gira em torno de Justine (Garance Marillier), uma caloura do curso de veterinária que é vegetariana convicta, fruto da criação dada por seus pais, também vegetarianos resolutos. Assim que as aulas começam, ela vai atrás de sua irmã, Alexia (Ella Rumpf), a qual também estuda na mesma universidade, uma veterana. O grau de parentesco, no entanto, não é suficiente para salvar Justine dos diversos trotes aos quais os novatos na universidade são submetidos. Pelo contrário, por ser irmã de uma veterana influente, a pressão é ainda maior. Uma dessas peripécias envolve comer o rim de um coelho cru, tarefa que inicialmente choca a garota, mas que ela acaba cumprindo por medo de sofrer represálias e ser excluída do grupo social logo nos primeiros dias de aula. No entanto, ao quebrar o seu voto de não ingerir carne, a personagem acaba despertando dentro de si algo bestial, que não vai deixá-la em paz até que passe a devorar carne humana.


É interessante notar o paralelo que o longa traça entre o consumo de carne e a sexualidade humana. Muitas das tarefas forçadas pelos veteranos são de natureza sexual, e é possível perceber claramente uma mudança no comportamento da protagonista no decorrer do filme, partindo de uma garota virgem, tímida e retraída, até se tornar sexualmente ativa e extrovertida, ao ponto de se prejudicar com suas novas predisposições, indo de um extremo ao outro. Essas duas linhas, a do carnivorismo e da liberação sexual, vão crescendo paralelamente até se cruzarem e culminarem em um dos momentos mais fortes da obra, o qual certamente fará o estômago dos mais fracos pedir arrego.

Outra tema que Grave traz à tona de maneira sutil, mas eficiente, é o papel da mulher na sociedade e o seu poder (ou não) de escolha. Em certo momento, quando em uma consulta médica, a doutora conta para Justine o caso de uma garota que era alvo de brincadeiras maldosas por causa da grossura dos seus braços. Em outra ocasião, uma garota desconhecida dá dicas à protagonista sobre como vomitar de forma mais eficiente, numa clara alusão aos distúrbios alimentares dos quais as mulheres são as maiores vítimas, justamente pela imposição social veiculada pela mídia de que devem ser magras. São duas cenas curtas, aparentemente soltas, mas que pontuam muito bem temas importantes do longa.


Além de um roteiro espetacular, o filme conta com atuações viscerais e convincentes, especialmente por parte das irmãs interpretadas por Marillier e Rumpf, as quais mergulharam em suas personagens, e o resultado não poderia ser melhor. Presenciar a transformação de Justine e o cinismo perigoso de Alexia é, ao mesmo tempo, incômodo e fascinante. Vale a pena chamar a atenção também para a fotografia de Ruben Impens, que somada à habilidade de Ducornau no comando das câmeras, nos levam de maneira primorosa à viagem claustrofóbica rumo ao submundo da psiquê humana pela qual a jovem deve passar durante sua iniciação.

Grave é um filme para poucos. Poucos vão aguentar assisti-lo até o fim, e menos ainda vão deixar de lado os seus preconceitos com o gênero e enxergar a beleza e força temática que percorrem a obra. Aos que conseguirem, no entanto, esperem por um delicioso e sangrento banquete.

Excelente

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