CRÍTICA | Zombi Child


Direção: Bertrand Bonello
Roteiro: Bertrand Bonello
Elenco: Louise Labeque, Wislanda Louimat, Katiana Milfort,, entre outros
Origem: França
Ano: 2019


Se por um acaso alguém pensa que a história do gênero zumbi começou com George Romero (A Noite dos Mortos-Vivos), engana-se. A figura caricata do zumbi passou por um bocado de coisas até que se tornasse essa figura mítica da cultura popular. Talvez o que poucos sabem é que suas raízes vieram do Haiti e dizem muito sobre um retrato de mitologias locais e, por outro lado, do racismo norte-americano quando essas mesmas histórias foram reproduzidas nos Estados Unidos. Dirigido e roteirizado por Bertrand Bonello (Nocturama), Zombi Child poe o tema em evidência.

À primeira vista, o filme tenta se vender como um drama de horror temperado com uma série de comentários sociais que evoquem reflexão, principalmente, sobre a pauta étnica, racial e de tradições de matrizes africanas. Bonello faz isso até metade do caminho, quando o seu próprio discurso começa a negligenciar as próprias pautas que quis tratar. Ao tentar ser anti-colonialista, Bonello não consegue escapar da visão do colonizador e, tristemente, reproduz erros que já foram diversas vezes cometidos por pessoas brancas que decidem se apropriar de histórias negras para construir sua narrativa. 

Duas histórias são paralelamente contadas. Uma nos leva ao Haiti dos anos 1962, onde seguimos um homem que foi zumbificado, escravizado e que trabalha forçadamente na colheita de cana de açúcar. Aliás, trata-se da história real de um homem chamado Clairvius Nascisse, que foi o primeiro cado de zumbificação comprovada no mundo. Este é, sem dúvidas, o arco mais interessante da história, isso porque resgata as raízes da imagem do zumbi antes mesmo dos estadunidenses o terem levado a Hollywood.

Foto: California Filmes

Antes mesmo do cinema, no século 19, historiadores criaram retratos sensacionalistas de um tipo de ser humano “inconsciente, de olhos perdidos, incapaz de se comunicar e de pensar; um ser sem memórias”. A história do zumbi está intimamente ligada com a história da negritude do Haiti, já que os retratos bestiais eram, na verdade, de pessoas em situação de escravidão.

Até determinado momento, parece que Bonello tem intenção de resgatar a memória dessas histórias e levá-las ao grande público, como uma espécie de “memória”, de quais eram as reais situações por trás do espetáculo das “criaturas haitianas”. Mas com a chegada da segunda história, as coisas começam a ficar nebulosas e já não se sabe o que o enredo quer transmitir. 

Em uma escola/internato voltado para garotas de elite (só consegue vaga quem tem pai e mãe condecorados), a protagonista é Fanny (Louise Labeque). Lá, ela é a única amiga de Mélissa (Wislanda Louimat), uma garota solitária, órfã, de origens haitianas e considerada estranha pelas outras garotas. 

Mélissa é a única garota negra do colégio, e suas “desvantagens” são evidenciadas tanto nas descrições feitas por outras personagens em relação a ela, quanto nos recursos de direção. Wislanda Louimat, atriz estreante, nunca é enquadrada em primeiro plano, tampouco é posicionada no centro quando está aglomerada de outras garotas. As brancas sempre aparecem e a camuflam, às vezes tornando difícil identificar onde ela está. 

Porém, mais uma vez, o roteiro confunde: estaria ele fazendo isso para intensificar o distanciamento de Mélissa em meio à branquidade? Talvez. Mas o curioso é que apesar da personagem ser uma chave importante para a interligação das histórias, a protagonista é Fanny, a garota branca que se encaixa nos padrões estéticos e que tem como motivação para suas ações o (tão surpreendente e inesperado) amor. Ao tentar abordar temas como o distanciamento de identidade sentidos pela mulher negra, ele o diretor/roteirista o faz do ponto de vista de estranheza da menina branca sobre suas tradições.

Foto: California Filmes

A parte do terror vem nos últimos 30 minutos, quando nos é apresentada Katy (Katiana Milfort), a tia guardiã de Mélissa. Ela é uma mambo - considerada sacerdotisa do vodu, uma grande detentora de conhecimento das tradições. Parece uma mulher solitária e sem um emprego estável, realidade infelizmente comum para imigrantes no mundo todo. Ela é forte, ela é poderosa, ela traz autoafirmação identitária. Ela é ótima… e aí chega Fanny, depois de um coração partido, e a encontra em segredo, pedindo para que faça um trabalho espiritual para se livrar da sua dor.

E é aqui que tudo vai por água abaixo. 

Bonello começa uma construção interessante sobre a ignorância de pessoas brancas em relação às religiões e tradições de matrizes africanas. “Você não conhece a cultura, não está preparada”, diz Katy. Mas a motivação que a faz mudar de ideia é o momento em que a menina branca oferece alguns tantos euros, manipulando a situação da maneira como deseja e conseguindo seu trabalho. 

O que segue, então, foi a tentativa de Bonello de criar uma atmosfera de horror. Mas é aqui que sua máscara cai e o diretor se rende a mais um vício de linguagem do colonizador. Ele monta uma série de rituais alegóricos, caricatos e que continuam a colocar a religião de matriz africana naquele lugar de “aterrorizante”. Para conseguir isso, ele usa de gritos, “possessões”, olhos arregalados e batuques. 

Confesso que deixei o cinema confusa. Saí da minha poltrona até que admirando o filme, mas não demorou muito até que percebesse que o roteiro deixa diversas pontas soltas. Afinal, o que ele queria? Um filme de zumbi? Fazer um comentário histórico ou rebater situações sociais (como vem fazendo Jordan Peele, por exemplo)? Fazer um posicionamento? Não se sabe. O que me aterroriza não é o fraco ato final, mas o fato de não saber o que a obra quis me dizer.

Foto: California Filmes

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