CRÍTICA | Vestida Para Matar

Direção: Brian De Palma
Roteiro: Brian De Palma
Elenco: Michael Caine, Angie Dickinson, Nancy Allen, entre outros
Origem: EUA
Ano: 1980

Apesar da trama de Vestida Para Matar (Dressed to Kill) poder ser sintetizada com muita objetividade, há muita coisa que qualquer contexto externo não arriscaria introduzir ao espectador. Não caberia explicar como nesse suspense policial meio rocambolesco temos gerigonças de espionagem adolescente ou um cortejo na forma de labirinto. Melhor do que qualquer princípio oral é - inclusive, onde a imagem do diretor Brian De Palma (Carrie, a Estranha) brilha mais - sua comunicação espacial, a desinibição da câmera em se apresentar como instrumento ardiloso e arbitrário de uma obra de ficção.

Em Vestida para Matar acompanhamos por todo primeiro ato a jornada sexualmente frustrada de Kate Miller (Angie Dickinson) entre devaneios de abuso, perseguições e esconderijos. Ela se encontra insatisfeita em seu casamento, mas ama seu fillho Peter (Keith Gordon) e encontra um lugar de desabafo no psiquiatra Robert Elliot (Michael Caine). É tanto tempo dispensado para a personagem em momentos pouco verbais, mas carregados de informação, que torna ainda mais físico o corte vivido pelo espectador quando sua protagonista é repetidamente lacerada por uma navalha de barbear ostentada por uma misteriosa mulher loira encoberta. Essa semelhança com a cadência de Psicose (1960) é apenas uma das inúmeras rimas hitchcockianas possíveis no filme.

A única testemunha do ocorrido, a prostituta de luxo Liz Blake (Nancy Allen), acaba se tornando também principal suspeita da força policial, uma vez que nenhuma mulher loira foi avistada nas proximidades da cena do crime. Infelizmente o caso da premissa breve também é um mecanismo de autopreservação, pois quanto mais se explica do filme, mais óbvio se torna o twist que costura os eventos e, conseguinte, mais se revela a fragilidade desse fio e suas problemáticas impossíveis de desviar.

Filmways Pictures

É um dilema corriqueiro ao fazer qualquer leitura deslocada de um tempo, o anacronismo se torna presente e mobiliza diversas posturas. Há quem rejeite e considere arrogante impor ao fruto de um período o olhar refinado acessível para inúmeras questões na atualidade. Na outra arquibancada, há os que abominam tal protecionismo e não vão medir palavras para desfiar uma obra que não responda adequadamente ao futuro pro qual não se planejou o bastante. Vai saber qual a resposta certa, quais prioridades precisam ser estabelecidas para sorver a quintessência magnífica de uma arte particular? Talvez seja razoável, enquanto permanecemos inconclusos nesse desafio, não excluir nenhuma das percepções.

Vestida para Matar conta com uma compreensão espacial refinadíssima. Trabalhar a profundidade de campo atrai a atenção mesmo dos espectadores mais desatentos sobre a natureza do que os está fascinando em tela, contudo isso também se aplica a um procedimento inverso, onde os planos-detalhes, as claustrofobias e personagens prensados em absurdos quadrados levam a dianteira. Aqui, o movimento de uma gaveta, os cliques de uma câmera, o cair de uma luva não apenas recebem atenção, mas reverência. É um longa-metragem essencialmente construído em detalhes apurados e câmera astuta, do tipo que nunca cansa o olhar.

DITO ISSO

Não é novidade o tratamento bizonho, discriminatório e conservador reservado à pessoas transgênero no cinema (estadunidense em particular, afinal foi esse país que nos deu Ace Ventura e Buffalo Bill). Muitos filmes antes dos anos 1980 foram capazes de tratar o assunto com uma parcela de respeito, mesmo dentro das limitações discursivas sobre o tema em sua época. A grosseria com a qual a transgenereidade é posta no mesmo balaio que distúrbios de personalidade e tendências homicidas não pode ser defendida pelo ano de seu berço. E não se trata apenas de uma perturbação de agenda política, mas o desinteresse completo direcionado à antagonista fundamental daquela história e os pormenores de seu conflito de gênero e sexualidade atropelam todo o resto do filme, impedindo que ótimos fragmentos se unam numa colagem final e resulte num bom arranjo.

É uma obra estilhaçada por uma conclusão óbvia, imatura, infrutífera e, francamente, nada intrigante. E isso efetivamente mina outros deslocamentos de ação, pois toda a sequência final de pesadelo no banheiro, por mais magnífica e eloquente que seja sem qualquer diálogo, se esgota de tensão pela personagem de Robert Elliot não ser em nada palpável. É um delírio solidificado em cima de estereótipos e fantasias pouco criativas.

Filmways Pictures

De verdade, é estabelecida a sexualidade como o gatilho que ocasiona a transição entre duas personas masculina e feminina, como se, ao interagir com outras mulheres, isso selasse o destino de seu corpo como um masculino. É uma série de gafes e compreensões bobas sobre desejo. As cenas "taradas" do filme são tão pouco empolgantes que você quase se esquece de ficar incomodado com a sexualização fetichista dos corpos femininos, pois nada ali é provocativo em consonância com nada. É um pôster duplo isolado de nudez, mas impressa numa revista sobre qualquer outro assunto. Para nem falar de que o único momento com personagens negros no longa envolve imediatamente um grupo de assediadores sexuais violentos.

São quadros frígidos, não só de um tempo, mas de insensibilidade. O gosto que fica é de que, nessa aventura meio traumática, meio pastelona, o diretor faz um passeio incrível e sofisticado demais por uma história pela qual não nutre o menor afeto ou interesse em seus personagens.

Bom



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