CRÍTICA | Laranja Mecânica

Direção: Stanley Kubrick
Roteiro: Stanley Kubrick
Elenco: Malcolm McDowell, Patrick Magee, Warren Clarke, entre outros
Origem: Reino Unido/EUA
Ano: 1971


Entre outros tantos feitos, Stanley Kubrick (2001: Uma Odisseia no Espaço) dirigiu uma das adaptações mais polêmicas do seu tempo. A melhor palavra para definir sua versão de Laranja Mecânica (A Clockwork Orange) é: desconforto. Impresso ali, tanto por sua temática difícil, como pelas técnicas que utiliza para alcançar tal feito. 

Originalmente, a história foi escrita nove anos antes pelo autor britânico Anthony Burgess. Nasceu como um romance distópico sobre uma sociedade apodrecida, mais especificamente o jovem Alex DeLarge (Malcolm McDowell), um sociopata de 15 anos que comanda uma gangue de garotos - seus “drugues”, como são chamados - pelas ruas. Juntos cometem desde pequenos delitos (como roubo ou dirigir em alta velocidade) até atos violentos e de vandalismo em uma Grã-Bretanha esquecida e sem leis.

Em um desses atos, após invadirem a casa de uma senhora e cometer um assassinato, Alex é capturado pela polícia e é convidado a ser cobaia no experimento Ludovico, um método que promete uma possível cura à violência e a contenção dos desejos perversos de um cidadão que, um dia, foi considerado um monstro. 

Foto: Warner Bros Pictures

Tanto por seu viés sócio-político como por abraçar o ponto de vista de um anti-herói extremamente polêmico, Laranja Mecânica é um divisor de opiniões. Fato é que Kubrick não se preocupa em ser cuidadoso no sentido de polir o que seriam as partes feias do enredo. A narrativa é brutal, nua e crua, e quase nada é omitido ao espectador. Cenas de sexo, estupro e covardia são retratadas com certa naturalidade, sem filtros, para ilustrar a visão do protagonista do que ele mesmo chama de “ultraviolência”. 

Longe, porém, de uma exaltação da violência, o longa prefere criptografar a mensagem com uma ironia quase imperceptível. Se levado ao pé da letra, Laranja Mecânica se distorce em relação ao que realmente é.

Outro grande ponto do roteiro é a quebra da ideia de dualidade, já que foi nessa época que começaram a surgir filmes que não tratavam, de certa forma, de uma luta contra “o bem e o mal”. Esses conceitos se misturam de tal maneira que o espectador se confunde, não sabendo mais se deve desprezar ou simpatizar com o protagonista. 

A frase que melhor descreve o enredo passa quase desapercebida, dita por um mero figurante. Ao início do filme, Alex e seus drugues agridem um morador de rua, que clama que as pessoas passaram a olhar em demasia para cima, para o Céu, que acabaram abandonaram a Terra. Trata-se de uma perfeita alusão à competição entre Estados Unidos e União Soviética durante a Guerra Fria, sobre quem conseguiria chegar ao espaço primeiro.

Foto: Warner Bros Pictures

Devo destacar, durante o tratamento Ludovico, ao qual Alex é submetido, a icônica cena em que os olhos do protagonista são forçados a permanecerem abertos por um aparelho metálico, forçando-o a assistir cenas brutais de atos similares aos que cometera ao som da 9ª Sinfonia de Beethoven, sua preferida. No entanto, é instalada nele uma aversão em relação ao ato violento, o que retira do protagonista seus reflexos de defesa e parte de sua identidade. Esse detalhe é a base para fundamentar um dos levantamentos mais associados ao filme: a falha do Estado.

Kubrick apresenta aos olhares do espectador um personagem sem cor, vestido de uniforme cinza e branco. Malcolm McDowell (Calígula), que interpreta Alex brilhantemente, passeia por ruas de uma cidade que está em ruínas: suja, escura, a pobreza e o descuido instalados em todos os espaços públicos. Há um descuido do que seriam as “autoridades”, personagens essas que são ocultas até a metade do filme - aqui representada em uma escala menor, que seria a do sistema prisional. Parte-se do pressuposto de que a situação de desamparo e de constante opressão por parte do Estado resultaria em duas incógnitas: cidadãos que se tornam subservientes e condizentes, sem questionar, a situação à qual são submetidos; ou cria-se o inverso, um “parasita” marginalizado que reverbera o descontentamento por meio da agressividade. 

Logo, a delinquência criada no protagonista é fruto de seu próprio criador, o estabelecedor das normas.

Por outro lado, há o escárnio de uma elite que se isola e se protege da criminalidade. O design de produção as enfeita de maneira diferente: tanto as mobílias como o figurino recebem cores vibrantes, referenciando o movimento pop-art que estava em alta. Se os comportamentos de Alex procuram destruir a ele mesmo e aos outros, os dessa elite são diferentes, prezando pelo autocuidado e por atividades como a escrita e à yoga (até hoje relacionadas como práticas “ociosas”, que só quem não precisa de dinheiro teria a preocupação de fazer).

Foto: Warner Bros Pictures

A direção e a montagem cumprem seu papel ao utilizarem todos os recursos possíveis para intensificar o tom “perturbador” pretendido. Kubrick opta por planos que parecem se distorcer e se movimentar bruscamente em determinadas cenas de violência, enquanto que em outras, opta pela calma - como no caso da cena de estupro em que McDowell improvisou o canto de "Singin' in the  Rain", ato que fez com que Gene Kelly (Cantando na Chuva), intérprete original da cena, o tenha desprezado depois do lançamento.

A trilha sonora, que passeia pelos sintetizadores de Wendy Carlos (Jogador Nº 1) e pela música clássica, também funciona para o mesmo propósito. Aliás, é importante destacar o trabalho de Carlos, uma das primeiras mulheres a utilizar o sintetizador na música. Seu trabalho deu ao filme uma trilha original, hipnótica e magistral.

Se Stephen King não economizou farpas para com a adaptação de O Iluminado (1980), que seria lançado dali a oito anos, em 1977, Burgess viu sair do papel uma adaptação fiel de sua obra. Kubrick levou às telas até mesmo o complexo glossário que marca o vocabulário do jovem Alex nos livros, para reforçar sua infantilidade apesar dos pesares. Apenas uma dificuldade pode ter transtornado o autor: a censura da época, que decidiu que o último capítulo do livro, em que Alex é descrito anos depois como um indivíduo que consegue se reinserir e se reestabelecer em sociedade, não deveria chegar aos cinemas. O motivo é meramente o fato de que entendia-se que um monstro não poderia receber um “final feliz”, o que poderia encorajar ou justificar à criminalidade e à violência.

Laranja Mecânica promove debates que refletem sobre pilares políticos e sociais constantemente. O mais forte dele ressoa, sem dúvida, sobre a maneira como tanto Estado como sociedade lidam com alguém que “precisa ser reformado” e por quê. Por esse motivo, não perdeu seu frescor e atemporalidade. A diferença, talvez, seja a de que agora não olhamos para a Terra, tampouco para o Céu.

Ótimo

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