The Handmaid's Tale | 1ª Temporada


Margaret Atwood é uma autora de respeito na história da literatura em língua inglesa. Tendo escrito diversos livros de romance e poesia, seu foco maior sempre foi naquilo que, com o tempo, foi chamado de "ficção especulativa". Esse gênero, não muito diferente da ficção científica, foca em realidades alternativas que poderiam ser o nosso destino caso ocorresse algum evento que modificasse todas as perspectivas sociais e culturais a que estamos acostumados. A isso, chamamos distopia, a antítese da utopia: aquilo que não desejamos de forma alguma que aconteça, uma realidade negativa que é criada para passar uma mensagem, muitas vezes por meio do exagero, sobre alguma estrutura social atual. Exemplos famosos desses mundos são aqueles presentes em 1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.

É na intenção de criar um mundo distópico que O Conto da Aia (The Handmaid's Tale, no original) foi escrito pela autora canadense em 1985, livro que agora foi adaptado para uma série do serviço de streaming Hulu, cuja primeira temporada, que foi recentemente ao ar, é o objeto dessa crítica. As semelhanças e diferenças entre o livro e a série não vão ser colocados em discussão aqui, mas é interessante dizer que boa parte do enredo e das personagens são comuns às duas mídias e, como frequentemente é o caso, o livro complementa a vivência e as mensagens da série e vice-versa.

A premissa é bem clara desde o primeiro episódio: Offred, a protagonista, interpretada por Elizabeth Moss (mais sobre a excepcional performance da atriz a seguir), mora na República de Gilead, um país que um dia foi os Estados Unidos mas, após um golpe de estado promovido por um grupo cristão chamado Filhos de Jacob, se tornou uma ditadura totalitária patriarcal, que subjuga mulheres e retira os seus direitos. O motivo do sucesso dessa ideologia conservadora foi um decrescimento absurdo na taxa de fecundidade/fertilidade dos seres humanos devido ao excesso de poluição, o que levou à escassez de crianças, um perigo iminente à sobrevivência da nossa espécie. Nesse contexto nefasto, cresceu em popularidade a ideia de que essa incapacidade de se reproduzir era um castigo de Deus a um mundo libidinoso e subversivo, o que fez com que o fundamentalismo tomasse um grande espaço na sociedade - e isso permitiu que fosse consumado golpe à liberdade conduzido pelos Filhos de Jacob


Offred é uma Aia (Handmaid) - uma das poucas mulheres férteis que sobraram, ela é parte do lar de um Comandante da elite social (Fred Waterford, interpretado por Joseph Fiennes) e de sua esposa infértil (Serena Joy, interpretada por Yvonne Strahovski) e está ali para servi-los. Essa servência se dá pela sua participação mensal em uma Cerimônia, em que ela, deitada no colo de Serena, é penetrada pelo Comandante para que possa, com sorte, carregar e parir um filho, que será considerado cria do casal, e não seu. Tudo isso é tirado, de forma bastante literal e ritualística, de um trecho da Bíblia em que a esposa de Jacó, Raquel, dá a tarefa divina a sua aia, Bilhah, de ter um filho do casal. O objetivo social dessa Cerimônia é bem claro: forçar mulheres a parir para que se garanta uma taxa mínima de crescimento populacional.

Essa trama complexa localiza a distopia de The Handmaid’s Tale em um lugar social e cultural aparentemente muito distante do nosso, que é marcado pela liberdade. Assim, a tarefa de adaptar para o audiovisual não é fácil, mas é extremamente bem feita pelos realizadores da série. O aspecto conservador e antiquado da sociedade de Gilead é ressaltado pelo ótimo design de produção, por exemplo, que decora as casas com elementos simples e de estilo vitoriano; além do figurino, que traz uma simbologia em cores: as Aias se vestem como freiras, porém em vermelho, para representar a fertilidade, as Esposas se vestem de azul, cor associada muitas vezes à pureza e santidade, e os Comandantes se vestem de preto, cor sóbria e discreta. Esse código de cor deixa claro para nós, espectadores, a qual casta pertence aquela pessoa que estamos vendo - e isso é essencial para que saibamos imediatamente o quão privilegiada (ou desprivilegiada) dentro da hierarquia é determinado personagem.

Outro elemento importante para a manutenção desse governo totalitário é o controle social, que está presente não só por meio dos Olhos, espiões do governo, mas também se dá em todos os indivíduos, que se vigiam e vigiam uns aos outros de forma constante. Isso é ressaltado por movimentos da câmera, que frequentemente acompanha a protagonista como se estivesse se esgueirando por trás dela; por elementos do figurino, como o chapéu utilizado pelas Aias, que só as permite ver o que está imediatamente à sua frente; mas principalmente pela atuação. Elizabeth Moss (Mad Men), em seu retrato de Offred, faz a personagem parecer estar sempre “engessada” pelos rituais a que tem que se submeter para o convívio em público, e, por isso, é nas micro expressões que a performance se destaca - é possível perceber, frequentemente, uma emoção muito forte que passa pelo rosto da atriz por um levantar de sobrancelhas ou um piscar de olhos mais lento. Isso deixa claro que até as reações mais básicas de uma face humana estão sob estrito controle e não podem ser expressadas da maneira intensa como elas seriam no mundo “real”. Aliás, uma forma de nos fazer ver o quão tóxico é esse ambiente é a constante oposição dele com o mundo de “antes” (antes da tomada de poder pelo regime totalitário), por meio de flashbacks da vida de Offred (que era June) com seu antigo marido, Luke, e sua filha, Hannah. Tais flashbacks também têm o papel de contextualizar a trama, explicitando como a situação chegou àquele ponto.


Em oposição a esse controle exacerbado, há momentos na série em que há revolta, revolução e desobediência: porém, os produtores são cuidadosos o suficiente para montar bem o cenário de controle e a escassez de alternativas daquelas mulheres para só mais tarde na temporada inserir esses momentos pontuais. Cada uma dessas instâncias de liberdade parece, ao espectador, um momento incrivelmente catártico, em que torcemos para que essas pessoas se libertem - mas isso só ocorre porque sabemos o tamanho da dor que elas sentem por ter que cumprir suas obrigações sociais. Esse tipo de cena nos faz sermos simpáticos até à Esposa do Comandante, Serena Joy - que poderia ser apenas uma personagem plana, que acredita piamente no sistema em que está inserida, mas é caracterizada de forma a ter traços tridimensionais e ser uma personagem fascinante para a série.

Com a mensagem clara de que privilégios, dentro de uma hierarquia, são moedas de grande valor - mesmo quem tem pouco poder pode abusar de quem não tem nenhum - essa primeira temporada de The Handmaid's Tale veio certeira num momento em que cresce uma onda de fundamentalismo que, mesmo se não tomar o poder da maneira direta mostrada na série, é capaz de realizar grandes estragos nos avanços sociais e minoritários já conquistados até agora. Por meio do exagero, da distopia, a série é capaz de comentar sobre situações reais - machismo, homofobia e controle social - e nos fazer imaginar: como queremos que o nosso futuro se desenhe?

Mesmo sabendo que a segunda temporada não trará respostas, e sim mais indagações, acredito que os espectadores estão ansiosos por mais e mais episódios para acompanhar a vida e a luta de Offred.

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