CRÍTICA | No Coração do Mundo

Direção: Gabriel Martins e Maurílio Martins
Roteiro: Gabriel Martins e Maurílio Martins
Elenco: Grace Passô, Leo Pyrata, MC Carol, Barbara Colen, Kelly Crifer, Robert Frank, entre outros
Origem: Brasil
Ano: 2019


O Coração do Mundo é um não-lugar, uma projeção conjurada para o futuro. É sempre para onde se está indo, onde os sonhos possíveis moram. Melhor explico ao reproduzir a síntese dada por Selma (personagem da incomparável Grace Passô em uma performance irretocável):

"É onde a gente quer pisar, é onde vai o desejo da gente. É o próximo lugar."

Enquanto define onde mora seus próprios objetivos e esperanças para Marcos (Leo Pyrata), Selma fala pelo visor de uma gravação, já nem estando mais ali fisicamente por inteiro. Ainda assim, sua descrição carrega um paradoxo cruel, uma vez que não se pode estar “NO” coração do mundo como o título evoca. Porque o Coração já é o lugar seguinte.

Na última década a linguística do cinema nacional tem abraçado espaçosos grandes planos, silenciosos e pacientes, objetivando exprimir dali uma experiência próxima do sufoco da realidade. Mas tenho visto também recorrente a sugestão de que o atual estado de desamparo em todos os caminhos brasileiros pode ser melhor entendido pela ocorrência da linguagem de gênero explícita, mais brutal e imediata, usufruindo da alegoria e de fundamentos plásticos para reavaliar a condição sôfrega dos indivíduos que pior sentem na pele as mazelas da nossa coordenada desintegração nacional pelo poder público.

Foto: Embaúba Filmes

Depois de vencer o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro em Curta-Metragem de Ficção, por Rapsódia Para o Homem Negro (2015), Gabriel Martins (Ela Volta na Quinta) tem em No Coração do Mundo a parceria de seu irmão Maurílio Martins (Quinze) na direção. A conexão entre os dois se justifica imediatamente pelas amarrações que o filme traça entre as pessoas do bairro de Contagem, em Belo Horizonte. Cada personagem aspira uma vida além daquela, mesmo não sabendo para onde ir, apenas desbaratados pelas crueldades que a cidade oferece, tudo acentuado pela vizinhança cordial que se tem com a morte em um lugar desguarnecido por qualquer estratégia de segurança pública eficiente. 

Terra onde a lei é outra e ninguém está a salvo; poderia ser uma definição sucinta do Brasil como um todo. Também é essa fragilidade das estruturas que infunde em seus personagens a ideia de que a estrada para uma vida melhor possui atalhos e macetes. Para Ana (Kelly Crifer), desgastada por uma jornada de trabalho insensível e trancafiada aos cuidados que deve ao seu pai incapacitado, esses limites parecem tão frívolos que mesmo uma troca de roupa e cabelo já lhe abre portas para a ilusão de outra realidade econômica e social. Inclusive, vale constar que Ana e Marcos já eram um casal em um curta dos diretores, Contagem (2010), demonstrando que a pesquisa e apuro com aquele fragmento urbano e aquelas vidas marginalizadas não veio com pouco esforço do dia para noite.

Mesmo calma, a imagem está sempre se deslocando suavemente, convidando pouco a pouco o espectador a ver mais daquelas casas, daquele chão de terra batida, concreto mal arregimentado e infiltrações, que ainda nas piores condições consegue ser palco de celebração e amizade. A gradação do filme até o espectador poder perceber com clareza que está acompanhando uma obra de faroeste à brasileira, da melhor forma possível, torna todo o processo ainda mais elegante sem deixar de ser orgânico.

Foto: Embaúba Filmes

Por fim, vale nota também cada aparição da MC Carol. Não apenas hilária, sua personagem sempre traz ao holofote pessoas cuja escolha é a abnegação, que contrasta com os rumos do trio principal.

Excelente

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