CRÍTICA | Gatinhas e Gatões

Direção: John Hughes
Roteiro: John Hughes
Elenco: Molly Ringwald, Anthony Michael Hall, Michael Schoeffling, John Cusack, Justin Henry, entre outros
Origem: EUA
Ano: 1984


No último mês uma notícia explodiu nas mídias: uma garota de apenas 10 anos, vítima de estupros há quatro, por seu próprio tio, deu entrada em um hospital do Espírito Santo. Ela estava grávida há cerca de três meses e, mesmo após autorização judicial, o hospital se negou a fazer o aborto. O procedimento veio a ser realizado em Recife, sob os protestos de grupos religiosos “pró-vida” que gritavam que a menina era uma “assassina”.

Em 2017, uma adolescente de 16 anos do Rio de Janeiro, foi vítima de um estupro coletivo por 33 homens. As imagens do crime foram registradas e divulgadas nas redes sociais pelos próprios criminosos. Ela foi humilhada e culpada por muitos, inclusive pelo delegado responsável pelo caso. Ainda no mesmo ano, dessa vez em São Paulo, três garotos arrastaram e trancaram uma menina de 12 anos para o banheiro masculino da escola e a estupraram.

Esses são apenas alguns casos que ganharam notoriedade em um país em que mais de 66 mil casos de estupro são registrados por ano, segundo o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Talvez você esteja se perguntando o porquê desses dados estarem sendo apresentados em um texto sobre cinema. Por que falar sobre isso em uma crítica sobre Gatinhas e Gatões (Sixteen Candles)?

A cultura do estupro não nasceu de forma espontânea no mundo, ao contrário, existem mecanismos culturais e sociais, como o cinema, que a propagam e a fortalecem. Em todos os casos citados, existem elementos comuns: a banalização da violência, a culpabilização da vítima, a objetificação das meninas e mulheres. Como tantos outros filmes, Gatinhas e Gatões infelizmente tem a sua parcela de culpa nessa triste e revoltante realidade.

Foto: Universal Pictures

Lançado em 1984, o filme foi dirigido por John Hughes (Clube dos Cinco), nome referência dos anos 1980, já que seus trabalhos fizeram enorme sucesso na época e permaneceram vivos na memória de muitos, construindo bases para posteriores narrativas sobre adolescência, vida colegial e amadurecimento. É quase impossível não enxergar algum elemento de Hughes nos filmes teens atuais, seja a protagonista deslocada, o galã popular ou o nerd do colégio.

Gatinhas e Gatões segue a risca essa fórmula, já que acompanhamos o dia a dia de Samantha (Molly Ringwald), uma jovem colegial que tem o seu aniversário de 16 anos esquecido pela família e é perdidamente apaixonada pelo garoto mais popular da escola, o veterano Jake (Michael Schoeffling).

Para além dessa breve sinopse não há muita história para contar, já que o casal de protagonistas não troca meia dúzia de palavras ao longo de toda a obra. Jake, após acidentalmente descobrir sobre a paixão de Sam, fica quase obcecado pela mocinha e recebe a ajuda do nerd, interpretado por Anthony Michael Hall (Mulher Nota 1000), para tentar conquistá-la.

Dentro desse contexto, Gatinhas e Gatões soa extremamente datado, o que, em minha opinião, não justifica todo o seu conteúdo sexista, estereotipado e até xenofóbico. É sim possível encontrar filmes produzidos na mesma época com boa qualidade e sem toda essa problemática. E vale lembrar que na década de 1980, o movimento feminista já estava consolidado, bem como os movimentos pelos direitos civis. Já havia também diretores e diretoras que abordavam com maestria questões raciais e de gênero em suas filmografias. Aliás, ouso dizer que existem longas com a mesma temática – e até do próprio Hughes – que passam mensagens muito melhores.

Um dos primeiros pontos de tensão surge logo início com o personagem Long Duk Dong (Gedde Watanabe), um intercambista que mora com os avós de Samantha. Ele é o alívio cômico da narrativa, mas o seu humor soa artificial e exagerado, bem como sua figura é uma representação ofensiva de povos asiáticos. Desde muito antes, Hollywood já alimentava clichês sobre grupos sociais e étnicos.

Foto: Universal Pictures

Contudo, o que mais salta aos olhos é a apologia à cultura do estupro, presente na subtrama estabelecida pelo roteiro de Hughes. Caroline (Haviland Morris), a namorada de Jake, fica bêbada em uma festa e então é “passada” de um rapaz para o outro para ser assediada e estuprada. O diálogo entre os dois acontece da forma mais natural possível, o que torna a cena ainda mais revoltante:

“Posso tirar casquinha de outras quando bem quiser. Caroline está lá no quarto desmaiada. Poderia violá-la de dez formas diferentes, se quisesse.” 

(...) 

“Vamos fazer um trato. Vou deixá-lo levar Caroline para casa (...) E daí? Ela está tão bêbada que nem vai perceber.”

Jake é o cara dos sonhos de qualquer garota: bonito, romântico e não parece ter nenhum problema com o fato de Sam ser um pouco excluída. Mesmo assim, ele não pensa duas vezes em oferecer a namorada inconsciente para outro cara. Ficando subentendido que Caroline é a culpada por isso acontecer, já que ela não é a garota certa:

“Ela não sabe nada sobre amor. Ela só se interessa por festas. Quero uma namorada séria.”

O estereótipo que ela representa é o de uma garota superficial, sexual e, portanto, descartável. Todas essas interpretações, é bom dizer, não são fruto da minha imaginação, já que estampam diversas matérias na imprensa, apoiadas pela própria Molly Ringwald (A Garota de Rosa-Shocking). Entre elas, o texto da jornalista Constance Grady para o portal Vox:

“O que Gatinhas e Gatões está vendendo é o sonho de um cara inatingível que se apaixona por todas as garotas. Então, para a fantasia funcionar, Jake deve provar seu amor profundo e duradouro por Sam. Ignorar e degradar Caroline é um atalho fácil para esse objetivo, porque no universo moral de Gatinhas e Gatões, quanto mais você rebaixa uma garota - a prostituta - mais você pode exaltar a virgem."

 

No fim das contas, Jake não está apaixonado por Sam, mas sim pela ideia dessa jovem virginal que o ama (lembrando que eles só conversam pela primeira vez na última cena do filme). São esses pequenos detalhes - por mais insignificantes que possam parecer para alguns - que formam aos poucos o imaginário de potenciais estupradores e vítimas silenciadas que se sentem culpadas. 

Como ponto positivo de Gatinhas e Gatões, destaco a interpretação de Ringwald, a queridinha dos anos 1980, que aqui nos entrega uma personagem muito relacionável e simpática, uma típica adolescente em crescimento. Da mesma forma, as cenas dramáticas como a conversa com o pai, mostram o potencial do texsto de Hughes. 

Gostar de uma obra ou de um artista não nos exime da responsabilidade de enxergá-lo criticamente. O contexto de criação, apesar de explicar o porquê de algumas questões e problemas presentes, não os justifica de maneira alguma. Não nego a importância do John Hughes para o cinema norte-americano, mas também não posso deixar de ver suas falhas.

Ruim

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