CRÍTICA | Marte Um

Direção: Gabriel Martins
Roteiro: Gabriel Martins
Elenco: Rejane Faria, Carlos Francisco, Camilla Damião, Cícero Lucas, Ana Hilário, entre outros
Origem: Brasil
Ano: 2022

A nova organização da Academia Brasileira de Cinema permitiu a seleção de Marte Um, mais nova produção da Filmes de Plástico (produtora que só arrecada mais prestígio dentro do cenário nacional a cada lançamento), como representante brasileiro na corrida ao Oscar de Filme Internacional com antecedência. Esse tempo adicional é fundamental para o planejamento de estratégias de distribuição que aumentem a projeção do longa-metragem, mas para fora da discussão de premiação, também dá à produção uma vida útil muito mais extensa nas salas de cinema dentro de seu próprio país. Algo que deveria ser básico, mas que tem sido uma disputa tortuosa contra a investida implacável de megaproduções enlatadas ao longo dos últimos anos.

É curioso olharmos para esse cenário de inúmeras adversidades no qual o cinema brasileiro se encontra para prosperar, pois é como o mesmo fôlego ofegante, mas movido por esperança e senso de coletivo, que a família Martins é representada como protagonista no novo longa de Gabriel Martins (No Coração do Mundo).

Na trama, a família negra vive em Contagem (palco de quase todos os filmes da produtora), periferia de Belo Horizonte, e tem em seu núcleo quatro pessoas. Wellington (Carlos Francisco) é um pai de família que trabalha como porteiro e tem como sua maior alegria ser torcedor do Grêmio, enquanto investe suas energias na futura carreira de futebolista do filho Deivinho (Cícero Lucas), que por sua vez joga apenas para agradar ao pai, mas sonha mesmo é em estudar astrofísica e participar da missão Marte Um de colonização do planeta vermelho. Sua confidente desta ambição é a irmã mais velha, Eunice (Camilla Damião), que encontra dificuldades de comunicação com o pai, sem saber como revelar que agora tem uma namorada e está se preparando para sair de casa. Todos os três vivem sob os cuidados incansáveis de Tércia (Rejane Faria), que após passar por uma situação traumática, passa a ser perseguida por uma maré de infortúnios até acreditar que está amaldiçoada.

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Esta possibilidade atormenta Tércia imediatamente, pois entende que esta maldição respinga por sua casa, transformando assim sua presença e devoção constante à família em uma contradição que os põe em problemas. Todo este temor se dá enquanto passam por apertos financeiros, constantemente patinando na corda bamba da fragilidade econômica que atormenta o Brasil e só viria a piorar, considerando que o filme ocorre entre 2018 e 2019, tendo a eleição e tomada de posse de Bolsonaro como marcadores de tempo.

A angústia e escassez de sobreviver a uma sociedade capitalista predatória que pouco oferece de perspectiva ou oportunidade para grupos marginalizados é o que torna a narrativa de Marte Um tão universal. Contudo, o que a eleva é o que trás nos detalhes também de uma experiência essencialmente brasileira: o senso de família, as celebrações e musicalidade que persistem mesmo nos mais árduos ambientes, os presentes de natal, os ônibus lotados, as bicicletas em ruas mal pavimentadas, moradoras se aproveitando de funcionários do condomínio, trambiques, defumação para tirar obsessor, etc. Espiritualidade e materialidade participam do cotidiano, num conflito diário de fazer as contas baterem, de encontrar prazer nos fins de semana, de juntar um pé de meia para conseguir algo as vezes não para você, mas para os seus. É fazer das tripas coração.

Como cada um dos personagens está em seu próprio dilema, Marte Um se desdobra bastante para dividir o tempo de tela. Apesar de ser a trama com menos acontecimento factual, a saga diária de Tércia acaba encapsulando toda a tônica do filme. A atuação magnética de Rejane Faria permite sentir na pele a privação de sono de seu coração atormentado pelos medos e pela impossibilidade de prover carinho e compreensão a todos em sua órbita maternal. Sua natureza não apreende o paradoxo de ter que se afastar - e com ela, sua maldição - para poder cuidar de sua família, pois é sua existência atenta que dá a liga entre todos. É também por tudo o que representa que logo sua última cena antes dos créditos arremata com tanto afeto o final.

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A duração de Marte Um não consegue comportar sempre uma resolução clara para todas as muitas subtramas que inicia, mas oferece tempo o bastante para nos encontrarmos com cada membro da família e seus suplícios. Sendo assim, mesmo que certos conflitos da obra não tenham solução apresentada, é do feitio brasileiro já encontrar um jeito, seguir em frente e junto é a única opção. É um descanso estrelado de ver o céu tão impossivelmente longe, mas cada vez mais próximo através de uma lente. A lente de um telescópio caseiro, a lente da câmera do cinema.

ÓTIMO


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