CRÍTICA | Os Fabelmans

Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Steven Spielberg e Tony Kushner
Elenco: Gabriel LaBelle, Michelle Williams, Paul Dano, Seth Rogen, Judd Hirsch, Julia Butters, entre outros
Origem: EUA/Índia
Ano: 2022

Enquanto um maestro de sonhos que se voltava constantemente para o futuro em sua inventividade, tecnologias e temas, Steven Spielberg (Amor, Sublime Amor) também sempre foi muito reverente à tradição. Esse olhar de respeito e admiração pela arte que produz, ao mesmo tempo em que explora suas novas formas, é responsável por tornar o nome do diretor um sinônimo imediato de Cinema. Criador de um incontável número de obras que gentilmente entraram na vida das pessoas pela porta da frente, chama atenção o fato de que esta é a primeira vez que ele muda o curso e convida o espectador para dentro de si, de sua casa, de seu passado, do pequeno armário onde aprendeu a decifrar a projeção de luz de um filme.

Os Fabelmans (The Fabelmans) é uma narrativa altamente biográfica do diretor, acompanhando o crescimento de Sammy Fabelman (Gabriel LaBelle) paralelo ao nascimento de sua paixão pela cinematografia. Desde a antecipação do início, prestes a entrar numa sala de exibição pela primeira vez, o cinema de certa forma concede uma benção e desfere uma maldição contra o jovem protagonista. É essa contradição, iniciada como uma breve curiosidade, que vai segui-lo no percurso dos dias. Se a imagem de um trem descarrilhando lhe tira o sono após o primeiro longa, logo descobre que o fascínio não está no veículo, mas na colisão. É a plena certeza do poder quase divino de tornar um ato de destruição em pura criação.

Essa ambição ainda sem nome por tomar controle da causalidade do mundo nas mãos não passa despercebida pelos seus pais, apesar das respostas distintas a esse entendimento. Se o seu pai Burt (Paul Dano) vê nisso um hobby charmoso, mas preocupantemente distrativo, sua mãe Mitzi (Michelle Williams) escuta ecos de sua própria paixão no olhar atento do filho. Há elementos suficientes para unir os três em torno daquela arte, como as inventivas soluções que Sammy encontra pra produzir seus filmes, simular minas explosivas, tiros a queima-roupa, trolleys, tudo a mais pura engenharia. Mas esse artesanato da realidade não convence seu pai, um homem da ciência. Enquanto composição, execução que costura e dobra o tempo, sua mãe vê a aptidão do filho. Dança para sua câmera, se reveste de luz e lembranças, mas com o passar dos anos a disparidade entre a imagem e o cotidiano se torna maior.

Universal Pictures

A infelicidade de Mitzi a corrói enquanto vão sendo empurrados a diferentes cidades e modos de vida até chegarem a Los Angeles, então separada do melhor amigo do casal, Bennie (Seth Rogen). Mas Sammy só se torna capaz de observar o que está por trás da tristeza de quem é mais próximo a ele através do que filmou, de um movimento sutil captado quadro a quadro. É nisso que seu talento para capturar o mundo se torna também uma condenação, como se estivesse dessensibilizado para a dor dos seus familiares, suas ânsias e arrependimentos. Somente através da câmera ele enxerga, mas não pode fazer diferente, como seu tio-avô Boris (Judd Hirsch) declara em uma das sequências mais intensas e abruptas. Tal qual a jornada do herói, aquele que os fabrica também não pode resistir ao chamado para a aventura. Não para sempre.

Consciente de sua condição incontornável, Sammy tenta fugir do mito, mas é onde Os Fabelmans mais brilha ao confessar que isso nunca foi possível para Spielberg. Talvez obedecer à nossa própria natureza nos ponha em conflito com aqueles que se ama mais, mas é impraticável uma vida onde se recorte os momentos de voo, os deuses da imaginação, onde mesmo uma pessoa cruel pode se transfigurar em gestos de grandeza. Não é este tipo de montagem que Sammy busca quando vara madrugadas em sua máquina de edição. O corte do diretor inclui mesmo o que o torna mais ele, por mais distante dos outros que isso o faça. Como é revelado para o aspirante a cineasta em seu primeiro encontro com John Ford (uma performance hilária do David Lynch, num encontro de brilhantismos hipnótico do terceiro ato), o horizonte pode estar acima ou abaixo. Nunca no meio, onde é mortalmente enfadonho. É preciso mudar eternamente a perspectiva sobre o infinito para continuar a tecer histórias.

Excelente


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