CRÍTICA | Digimon Adventure 02: O Início

Direção: Tomohisa Taguchi
Roteiro: Akiyoshi Hongo e Akatsuki Yamatoya
Elenco: Fukujurou Katayama, Junko Noda, Arthur Lounsbery, entre outros
Origem: Japão
Ano: 2023


Digimon é uma vigorosa franquia multiplataformas que, apesar da rivalidade forçada com Pokémon pela percepção ocidental, sobrevive de forma muito distinta. Enquanto a série de monstros de bolso é uma das marcas de jogos mais poderosas do planeta, escoando mudanças na fórmula apenas de maneira controlada, Digimon é repleto de experimentações. Seja em video-games, jogos de cartas, filmes e séries animadas, a franquia já tentou de tudo um pouco. O que, por um lado, permite reinvenções improváveis que preservam um eterno frescor para os monstros digitais, também acarreta em desafios e obstáculos próprios para a manutenção de sua lógica.

Cada serialização animada de Digimon conta com seu próprio universo, regras e elenco. O novo filme, que entra em cartaz nos cinemas brasileiros pela primeira vez, traz o elenco principal de Adventure 02 como protagonistas de sua trama, o que não ocorria desde 2001 com Digimon Adventure 02: Diaboromon Strikes Back. Este elenco em particular é conhecido dentro dos aficionados da franquia - e dizendo isso é impossível não me incluir na conversa - por não receber muitas flores dos fãs. Não há um único motivo concreto para isso, mas sim formas de avaliar o desempenho da série animada, a pouca consistência de sua narrativa e temática.

É agridoce constatar que essa fraqueza persiste em assolar a Digimon Adventure 02: O Início. Na trama, reencontramos o elenco testemunhando o advento de um imenso Digitama (de onde nascem os Digimons) pairando sobre a torre de Tóquio e o digiescolhido Lui Ohwada (Megumi Ogata) tentando intervir. Após ser salvo de uma queda pelos protagonistas, Lui resiste, mas é levado a contar sua história com seu parceiro digital, Ukkomon, que ele alega ter matado.

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Nesta premissa já moram inúmeros problemas em duas escalas de grandeza. Na ordem do filme enquanto uma obra fechada, O Início relega a todo o elenco principal o dever de orbitarem ao redor da trama deste novo personagem, ao mesmo tempo que o provocam para causar diálogos expositivos. Por pouco não são totalmente descartáveis para a narrativa. Soa muito agradável aos fãs de longa data a ideia de reencontrar o grupo e acompanhar seus dilemas - o retorno da maioria do elenco de dublagem brasileira aquece o coração -, mas apenas recebemos algumas caracterizações básicas conforme eles interagem com Lui. Essa escolha poderia sugerir que o longa não está mirando tanto na audiência mais velha, mas há ainda menos elementos que convidem um público mais novo. Pelo contrário, o filme se aventura tematicamente e graficamente em assuntos delicados e brutais. É um embate entre tons que não conseguem se misturar, o que pesa numa franquia famosa por dosar o maravilhamento e a maturidade tão bem.

Um dos pontos fortes de Digimon, contudo, sempre foi a audácia de não subestimar sua audiência infantil e permitir tramas mais voltadas ao psicológico do que a ação. Porém, nas séries animadas, isto vem acoplado a recompensas e desenvolvimentos, o que no filme em questão parece apenas gratuito e voltado para o valor de choque. E O Início é sobre essa história durante toda a sua duração, não permitindo quase nenhum espaço para o elenco principal - que virou de apoio - brilhar. O filme conta com a direção preciosa de Tomohisa Taguchi (Bleach) e é fácil identificar os méritos que ele trás. Esteticamente a produção é linda, inventiva em seus quadros e luzes, no olhar sobre os personagens. Infelizmente sua capacidade parece ter sido limitada pelas escolhas do roteiro. Mesmo sequências de ação que poderiam elevar o ritmo da obra são ínfimas e nulas, diminuindo até esse tipo de agência do time de crianças.

Já na escala de grandeza maior, do papel deste filme como engrenagem da linha cronológica da série Adventure, O Início é um pesadelo febril de logística. Aparentemente houve muito debate e conflito interno com o roteiro Akatsuki Yamatoya, pois o que o texto propõe contradiz a série de Adventure Tri - uma continuação serializada entre 2015 e 2018 com o elenco original de Adventure -, com o filme Last Kizuna, estabelece um retcom imenso com o lore da primeira série ao mesmo tempo que finge querer manter o epílogo da segunda série, onde ficou estabelecido que todas as crianças do mundo já possuíam um parceiro digital no contexto da vida adulta dos protagonistas. Se isso tudo pareceu confuso para você, pode se tranquilizar, é confuso para os fãs gabaritados também, presos numa disputa de cronologias e cânones, tentando encaixar e preencher lacunas que a própria equipe dos filmes não parece interessada em resolver.

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Tanto quanto filme quanto como parte da série Adventure, O Início é o ponto mais fora da curva, propondo um thriller psicológico soturno. Uma escolha ousada que precisaria de muito mais estrutura para vingar, ao invés de reciclar um certo padrão de filmes da franquia onde um digiescolhido inédito possui um Digimon infectado por forças malignas ou se convertendo no próprio antagonista em razão das circunstâncias. Isso já foi feito três vezes antes, tornando difícil não comparar. Só não é o pior uso deste modelo porque esse título ainda fica com Adventure Tri. Acaba que a obra se torna um acúmulo de oportunidades desperdiçadas e personagens célebres escanteados num longa que leva o título do grupo.

Há muita ambição visual e vai ser nostálgico para qualquer adulto que cresceu com Digimon revisitar o universo na tela grande, mas também é preciso evoluir assim como os monstros digitais para que a mera melancolia da lembrança não nos impeça de cobrar trabalhos mais coesos e afetuosos com o material base.

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