CRÍTICA | Pobres Criaturas

Direção: Yorgos Lanthimos
Roteiro: Tony McNamara e Alasdair Gray
Elenco: Emma Stone, Mark Ruffalo, Willem Dafoe, Ramy Youssef, entre outros
Origem: Irlanda/Reino Unido/EUA
Ano: 2023

Imagine uma versão feminista de Frankenstein que, ao mesmo tempo em que se passa em uma época antiga, também apresenta elementos futuristas de ficção científica, um viés filosófico anticonservador, abordagens de coming of age, transitando entre o bizarro, o satírico e o provocativo. Pobres Criaturas (Poor Things) é uma junção de tudo isso e vai além, trazendo uma trama propositalmente desconfortável e também estranhamente bonita e reflexiva. O diretor Yorgos Lanthimos (A Favorita), conhecido por seus filmes pouco convencionais e surpreendentes, cria um mundo completamente novo e, ao mesmo tempo, extremamente familiar, nos apresentando uma jornada de autoconhecimento e descoberta do ser feminino.

Baseado no livro de Alasdair Gray, a trama acompanha Bella Baxter (Emma Stone), que começa apenas como um experimento do cientista Godwin Baxter (Willem Dafoe). Ao ser trazida de volta à vida, contra a sua vontade, por meio de uma cirurgia bem “frankeinsteinesca”, transplantando o cérebro da filha ainda em seu ventre para a mãe, Bella passa a ver o mundo como uma criança presa no corpo de uma mulher adulta.

Ela vive sob a proteção de Godwin, que chega a ser uma figura paterna, não apenas por tê-la trazido de volta a vida, mas também por educá-la e protegê-la. No entanto, suas vontades vão aflorando rapidamente, com um apetite sexual intenso, fazendo com que a mesma fique ansiosa para conhecer o mundo. Buscando proteger sua inocência, Godwin e seu assistente Max McCandles (Ramy Youssef), este que se apaixona por ela e promete desposá-la, procuram a ajuda de um advogado, Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo) para fazer um contrato que a mantenha presa na mansão onde vivem para sempre.

Disney Studios

O advogado fica intrigado por aquela mulher e acaba persuadindo-a a fugir com ele. Bella está apaixonada pela ideia de descobrir o mundo e decide ir com Duncan nessa aventura repleta de prazeres. A partir daqui, o longa-metragem - que até então era em preto e branco - ganha cores, fazendo com que a fotografia ganhe ainda mais destaque.

Acompanhamos Bella satisfazendo toda a sua “fome” do mundo de diversas formas: seja por conta de suas vivências sexuais evidenciadas em tela, ou pelas descobertas de horrores, como a pobreza, a morte e a violência. Ela se decepciona ao entender o que é o mundo e o que ele espera que ela seja, e decide não se submeter a isso. Livre dos preconceitos de sua época, ela cresce firme em seu propósito de defender a igualdade e a libertação. Nesse processo, a protagonista toma decisões que prejudicam ela mesma e também os outros, mas começa a entender que as pessoas enxergam apenas o que ela é por fora, e não por dentro.

A jornada de descoberta e autoconhecimento da protagonista, mesmo que inicialmente inocente, acaba tendo um tom mais triste do que prazeroso. No fim das contas, como qualquer mulher, ela se vê controlada por todos os homens à sua volta, até em sua escolha de estar viva ou morta.

Bella Baxter é a caricatura da mulher “criada pelo homem”, que mostra a ideia do quanto a sociedade a enxerga como um objeto que cumpre seu propósito único de servidão. O destino que Bella encontra por seu apetite sexual é previsível e inevitável. Mesmo sendo uma mulher criada de forma não convencional, todas as amarras sociais são aplicadas exatamente da mesma forma, levando a personagem a entender com o tempo que é possível ser livre, mas que isso tem um preço.

Apesar de toda a pressão feita pelos homens em sua vida, que tentam a todo custo podar seus desejos e moldar sua personalidade, Bella mantém suas convicções e vontades de descobrir o seu propósito na Terra. A protagonista consegue se desprender das amarras sociais e patriarcais que a cercam, mostrando ao mundo que é ela quem decide o que irá fazer de sua vida e com quem ela irá ficar.

Disney Studios

Para dar vida a personagens tão complexos de forma espontânea e realista, a escolha do elenco foi acertadíssima. Emma Stone (La La Land), entrega uma atuação sublime, carismática, cômica, carregada de sentimentos, de um trabalho corporal complexo e de uma presença de tela inegável. Trata-se de uma das melhores atrizes de sua geração, que consegue transitar de forma genial por todas as nuances provocativas, ferozes e também ingênuas de sua personagem.

Willem Dafoe (O Farol) esbanja versatilidade, como de costume, em uma atuação potente e de traços excêntricos, dando vida a um cientista que se vê dividido entre o sentimentalismo e a ciência. Mark Ruffalo (Vingadores: Ultimato), por sua vez, o advogado charlatão Duncan Wedderbum, finalmente vive um vilão que, ao mesmo tempo em que é manipulador e cafajeste, acaba entregando, com seu carisma, momentos divertidíssimos, onde o espectador vibra com seu fracasso.

Pobres Criaturas permanece como uma obra de grande qualidade por saber brincar com gêneros e estilos para transmitir uma mensagem importante e de inegável valor. Afinal, nada como fazer uso de ideias absurdas, bizarras e por vezes até desagradáveis como verniz para sistematizar, desenvolver e sedimentar os verdadeiros temas centrais de um romance, provando que a boa e velha diversão pode vir acompanhada de altas doses de pensamento crítico, inteligente e profundo que deixa o espectador pensando sobre o que viu muito tempo depois dos créditos subirem.

Todos os quesitos técnicos que envolvem a construção desse mundo futurista e antiquado, tornam o longa uma experiência estranhamente bela. Lanthimos pega toda essa peculiaridade e excentricidade, e conduz de forma a nos trazer um desconforto proposital em todos os sentidos, até na duração da obra, que acaba se tornando por vezes repetitiva e um pouco longa.

Ao satirizar a sociedade com elementos bizarros de ficção científica, Pobres Criaturas entrega uma narrativa corajosa que aborda assuntos como desigualdade social, feminismo, relacionamentos, autoconhecimento, identidade e sentido da vida, tudo de um jeito bizarro e cômico, misturando diversos gêneros do cinema. Claramente não agradará a todos, mas tem suas merecidas onze indicações ao Oscar 2024.

Ótimo


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