CRÍTICA | Nós

Direção: Jordan Peele
Roteiro: Jordan Peele
Roteiro: Lupita Nyong'o, Winston Duke, Elisabeth Moss, Shahadi Wright Joseph, Evan Alex, entre outros
Origem: EUA
Ano: 2019


"Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei."

O versículo 11:11 de Jeremias é amplamente citado por Nós (Us), de maneira que fica impossível não enxergar. Um mistério óbvio, tanto pelas múltiplas vezes em que é reafirmado ao espectador, quanto pelo pressuposto ao adentrar na exibição de um filme de terror, que Deus abandonou aqueles personagens. Ou, ao menos, podemos dizer que um novo Deus tomou posse, muito mais disponível a sadismos em função da lógica.

Jordan Peele (Corra!) tem se consagrado como um diretor inconfundível. Um de seus atributos marcantes está na composição orgânica que consegue facilmente confeccionar ao visitar filmes de gênero e imbuí-los de personalidade, discussões sociais e uma tonalidade pontual de sátira moderna. Esta qualidade o estabelece como uma ponte entre moldes bem definidos do cinema e as demandas do nosso mundo moderno e imediatista para ser referenciado e desafiado. A realidade não pode se deslocar para qualquer direção se não for devidamente exposta ao conflito.

Nós, cujo título original Us é um trocadilho com o nome de seu país de origem (United States), apresenta inúmeras camadas de alegoria à sua história. Algumas mais sutis e elegantes, outras grosseiras e escancaradas. É possível afirmar que esse manancial mais potente prejudica a coesão do longa, especialmente em seu arco final, mas toda a natureza da trama é tão carregada de inspiração que fica fácil relevar desvios do caminho originalmente traçado.

Universal Pictures

Se em Corra! (Get Out) o objeto de Peele é explorar o racismo institucionalizado e convertido em fetichismo, em Nós, seu argumento é muito mais severo, pois aborda a própria face dos Estados Unidos como um vilão sanguinário. Os antagonistas são cópias dos civis da nação e vivem em túneis abandonados, inclusive esclarecendo o caráter subterrâneo, todavia pulsante dessas novas personas, cobertas de vermelho, bestiais, destrutivas. Seu objetivo é desvincular-se das contrapartes que se banharam no Sol por toda a vida, alçando autonomia. É uma materialização da luta do país contra seu ímpeto genocida, bárbaro e segregador. 

A sequência de introdução demarca com clareza o efetivo domínio do cineasta em condensar desconforto em um ambiente insuspeito, trazendo à tona estar na pele de uma pessoa desconectada do espaço que usufrui, sempre hesitante com o mundo ao redor e de guarda fechada para eventuais ataques.

O uso de uma casa de espelhos, logo no início, encharca a trama de aflição necessária. Em um salto temporal acompanhamos Adelaide (Lupita Nyong'o), que quando criança se perdeu naqueles reflexos. Ela está junta de seu marido, Gabe (Winston Duke), principal responsável pelo equilíbrio entre as sátiras ao próprio gênero e os picos de terror, apesar de essa transição não funcionar na totalidade das vezes, visto que em alguns momentos falta o timing correto.

A montagem é predominante na condução da obra. Não apenas por ser balanceada, mas pelo trabalho de ambientar o medo naquele universo, nunca se rendendo a constantes fáceis como jump scares, por exemplo. Pelo contrário, o filme não tem pressa em acompanhar seus personagens ou revelar seus antagonistas à luz do dia, pois por mais obscuro que seja este confronto, ele tem de ser revelado como o que é.

Universal Pictures

Existe dentro do longa um evento que é promovido pela televisão como um gesto de solidariedade, mas que quando é executado ao final, a câmera captura o rastro desta imagem como um muro, se estendendo indefinidamente pelo horizonte. Os gestos superficiais desta civilização protegem intenções distorcidas, divisoras, consequências de uma lógica sectária e odiosa. 

Se antes Jordan Peele falava com os negros que desavisadamente se desarmaram confiantes no minguar do conflito racial, agora ele direciona sua fala a todo um país de túneis e labirintos ocultos que não vão a lugar nenhum, giram em círculos alagados de sangue dos que foram largados toda vez que despontava um projeto de controle mais eficiente. Pela própria ambição desta discussão, Nós falha em dominar com clareza todos os aspectos apresentados, além de apresentar uma reviravolta "aos 45 do segundo tempo" com pouca necessidade além de um choque que solidifique o impacto final de praxe pela linguagem. Desvios não condenam Nós a ser menos do que a obra pulsante e desafiadora que nasceu para ser.

Ótimo

   

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