CRÍTICA | Ela Quer Tudo

Direção: Spike Lee
Roteiro: Spike Lee
Elenco: Tracy Camilla Johns, Tommy Redmond Hicks, John Canada Terrell, Spike Lee, entre outros
Origem: EUA
Ano: 1986


Nas mãos de Spike Lee (Destacamento Blood), o cinema é uma plataforma para o ativismo. O diretor é um dos principais nomes contemporâneos nos Estados Unidos a reivindicar a cultura, história e protagonismo negro na sétima arte. Com uma direção dinâmica e roteiros que vão direto ao ponto, ele escancara o racismo sistêmico de seu país e exibe o cotidiano da comunidade negra com grande verossimilhança.

Sua filmografia é marcante. É ele o responsável pela cinebiografia do nacionalista negro Malcolm X (1992), pelo retrato das comunidades urbanas de diversas origens em Faça a Coisa Certa (1989) além do mais recente e aclamado Infiltrado na Klan (2018), que inclusive venceu o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado. Como nada é perfeito, foi ele também o responsável pela fraca versão estadunidense do thriller sul-coreano Oldboy (2003), com Oldboy: Dias de Vingança (2013).

Nada disso seria possível, porém, se Ela Quer Tudo (She's Gotta Have It) não tivesse sido lançado em 1986. Foi graças a sua fábula sobre a poligamia, o prazer feminino e sua sátira à virilidade masculina que Spike conseguiu alcançar os olhos da crítica e impulsionar sua carreira.

O enredo segue Nola Darling (Tracy Camilla Johns), uma mulher sedutora e independente que cultiva três relacionamentos com três homens diferentes: Greer Childs (John Canada Terrell), rico e cheio de arrogância; Mars Blackmon (Spike Lee), imaturo e cômico; e Jamie Overstreet (Tommy Redmond Hicks), super protetor, que se apaixona por Nola no momento em que a vê.

Foto: 40 Acres & A Mule Filmworks

É interessante pensar que Ela Quer Tudo pode ser uma versão atualizada e menos trágica de Jules e Jim: Uma Mulher Para Dois (1962), filme de François Truffaut (A Noite Americana) pioneiro em retratar um relacionamento aberto. Aqui, por outro lado, Nola é quem dita os desejos de suas relações, ao mesmo tempo em que é disputada por três homens ao mesmo tempo.

O longa chegou em um momento social em que o movimento feminista nos Estados Unidos havia ganhado ainda mais força. No entanto, o recorte de Spike é ainda mais abrangente ao explorar a sexualidade de uma mulher negra; isto porque a sexualidade da mulher negra é cercada de mais tabus ainda do que, até mesmo, da própria mulher branca.

Nola, como deve ser, é a força a qual o filme gira em torno. Apaixonada por sexo e por sua liberdade, ela é uma mulher que se vê deslocada de seu tempo por não sentir que cabe na “caixa” da monogamia. A obra naturaliza a poligamia e as relações abertas - que se hoje ainda são debatidas como tabu, tente imaginar nos anos 1980 em uma comunidade tão marginalizada.

Ela não tenta se encaixar em outras pessoas e não tenta fazer de sua sexualidade um serviço para os homens; mas pensa o sexo como uma ferramenta para explorar seu próprio prazer feminino. Tem um trabalho bem sucedido, mas mantém suas raízes ao morar em um apartamento no Brooklyn, um dos bairros mais conhecidos de Nova York.

Por saber muito bem o que quer e quem é, Nola é quase como uma criatura mitológica. Temos a visão de quem ela é e a dos homens com quem se relaciona.. Sua presença está ali até mesmo quando não está em cena, o que a torna ainda mais marcante.

Foto: 40 Acres & A Mule Filmworks

Os personagens masculinos acabam criando novas versões da protagonista, versões frias, calculistas, loucas e, até mesmo, doentias. Spike expõe os medos e os egoísmos da masculinidade quando se vê de frente com seus próprios comportamentos naturalizados. O diretor aborda homens de maneira caricata e com muita sátira ao seu comportamento de virilidade e de insegurança enrustida com as mulheres.

Com esses elementos, o cineasta cria uma inversão de papéis de gênero em sua narrativa. Isso em uma época em que o jogo na construção de personagens ainda não era tão recorrente ou pensado. Ele transfere os comportamentos “comuns” de homens para uma mulher: o amor pelo sexo, o desejo por sua liberdade e o comportamento despreocupado e que visa apenas a si mesma, diferente do altruísmo ao qual as mulheres são geralmente associadas.

O comentário racial também está lá, é claro. No entanto, Greer é o personagem mais gritante ao transmitir a energia de um homem negro bem-sucedido que passa a fazer parte do status quo da elite branca. Ao se tornar capa de revista e possuir carros luxuosos, ele esnoba suas raízes, usando estereótipos como “preguiçoso” e “burro” para se referir a outras pessoas negras.

Greer critica e se frustra com Nola por ela ser uma mulher com potencial de ser “como ele”, mas que prefere continuar “igual” ao ainda residir no Brooklyn ou não se surpreender com sua vida atual luxuosa. “Eu poderia ter qualquer mulher no mundo, mas só estou com você porque você é bonita” e até “a partir de agora, só vou namorar mulheres brancas” são algumas falas que a protagonista ouve de um de seus amores.

Mesmo tentando avançar no tempo com sua narrativa diferente para a época, infelizmente Ela Quer Tudo pode ser problemático ao repetir o ciclo vicioso hollywoodiano: o da mulher independente que se rende ao desejo do homem. Spike parece escolher esse destino intencionalmente e desfazendo a ação depois para provar um ponto ao espectador. Mas ali, aos 45 minutos do segundo tempo, tudo fica contraditório e o que foi construído antes acaba perdendo muita força.

Foto: 40 Acres & A Mule Filmworks

Tecnicamente, Spike Lee rodou Ela Quer Tudo em preto e branco. Apenas um das sequências é colorida, uma espécie de cena de transição do longa-metragem que poderia ter sido mais curta. A escolha casa com o ritmo e o enredo da obra, que remete muito ao estilo de cinema produzido durante a Nouvelle Vague (movimento francês dos anos 1960). Mas, com suas assinaturas e estilo fílmico (como a quebra da quarta parede, a mescla entre ficção e documentário, e os registros reais da época em fotografia), Spike consegue trazer modernidade e atemporalidade ao seu trabalho.

Considerado o primeiro sucesso do diretor, Ela Quer Tudo não é perfeito, no entanto se estabelece como um filme de vanguarda por retratar questões sociais, muito focadas no recorte de gênero e raça, que antes não eram discutidas no cinema.

Bom

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