CRÍTICA | Malcolm X

Direção: Spike Lee
Roteiro: Spike Lee e Arnold Perl
Elenco: Denzel Washington, Angela Bassett, Spike Lee, Theresa Randle, Delroy Lindo, Al Freeman Jr., Albert Hall, entre outros
Origem: EUA / Japão
Ano: 1992


Os contornos épicos do filme de Spike Lee (Febre da Selva) podem induzir a uma expectativa grandiosa sobre o registro dos eventos de uma das figuras mais célebres da luta preta nos Estados Unidos - e, por conseguinte, no mundo. Apesar disso a jornada apresentada em Malcolm X (1992) é uma travessia mergulhada em imensos detalhes que compuseram suas transformações.

Desde a introdução do filme, com uma bandeira estadunidense sendo queimada em tela cheia, até uma montagem alegre de Malcolm (Denzel Washington) dançando pelo Harlem, há uma ambiguidade energética de prazer e fúria contida. A diversão se interrompe com os vislumbres do assassinato brutal do pai, da casa incendiada, dos irmãos separados pelo Estado. Sua mãe, Louise Little (Lonette McKee), só conseguia manter os empregos de doméstica devido a pele mais clara que possuía, pois sua mãe foi estuprada por um homem branco. Contudo, logo que se descobria essa condição ela voltava ao desemprego.

Tendo perdido o pai pela violência de supremacistas brancos, o resto da família por um governo de brancos e tendo suas ambições de uma vida melhor tolhidas por um sistema educacional branco, não é estranho que Malcolm internalize uma separação entre si e sua identidade preta em parte de sua juventude. Ele queima seu cabelo com produtos químicos para alisá-lo e almeja mulheres brancas - concebendo que essas eram uma propriedade dos homens brancos que estava possuindo para si. Pela própria experiência há um entendimento de carne sobre a condenação de sua existência inscrita em sua própria pele, mas esta raiva está pulverizada por suas relações e sem foco, até ser preso por um roubo - enquanto Sophia (Kate Vernon), sua namorada branca e cúmplice, não recebeu nem um quarto da mesma sentença.

Foto: 40 Acres & A Mule Filmworks

A obra consegue costurar parcelas da vida do protagonista - usando como base de adaptação o livro The Autobiography of Malcolm X, escrito por Alex Haley - criando três grandes momentos intercalados por processos de transmutação definitivos na vida do ativista. Todos estes adventos trabalham num campo completamente espiritual. Quando prisioneiro ele é introduzido ao islamismo e luzes invadem sua cela, vislumbres sagrados de homens santos se tornam sua companhia. Para combater a estrutura que o criminalizava imediatamente se instruiu.

Sua eloquência e vigor trazidos à vida por Denzel Washington (Mais e Melhores Blues) são completamente sedutores e não demora para que Malcolm ganhe um lugar de destaque como pregador na organização da Nação do Islã, pois toda sua crença é consolidada em uma profunda certeza de que não existe emancipação negra em um mundo dominado pelos brancos. Isto seria uma completa contradição da própria estrutura. Tal posicionamento angariou, na vida real, um incansável cerco de mídia que o antipatizava como instigador de conflitos raciais. Todavia, contrariando uma espécie de senso comum que o discurso hegemônico conseguiu vingar sobre sua pessoa, Malcolm nunca reage com violência após sua conversão ao islã, apenas ri com graça das implicações dos entrevistadores. 

Sua postura e sua fé não são feitas pétreas, e nisso reside o requinte da adaptação de Spike Lee. Quando suas escolhas são questionadas junto com as pessoas que tomou para seu lado e, nesse embate, novas verdades são apresentadas, o protagonista ousa mudar. Transforma o pódio do qual fala ao povo e com ele tudo ao seu redor. Está sempre em constante transformação, revelando que, como o filme traceja, não busca uma empreitada política, e sim uma incursão espiritual. Se na cadeia seu entendimento da própria negritude aflora combativa, em sua peregrinação para Meca (o Haje, tradição muçulmana), repleto de outros devotos de todas as etnias seu corpo e sua consciência mais uma vez se reconstroem. Ao passar a aceitar brancos na sua causa, agora movido por uma nova pulsão religiosa, angaria outros inimigos, desta vez entre os próprios membros da Nação do Islã.

Foto: 40 Acres & A Mule Filmworks

Em dado momento sua casa sofre um atentado, precedido por ameaças incansáveis que culminariam em seu assassinato na frente de esposa e filhos num comício em 1965. Sua casa é posta em chamas numa sequência praticamente idêntica à do início do filme, quando seu pai foi alvejado por membros da Klu Klux Klan - e mesmo assim opta por não matá-los mesmo com a oportunidade. Pai e filho se integram num mesmo sacrifício de fogo que atravessa o tempo.

Malcolm X, também conhecido como Al Hajj Malik Al-shabazz, repetidas vezes enfrentou o medo da mudança, seja sistêmica, seja interna. Não é construindo uma grandeza de caráter virtual que o filme apresenta seu protagonista, mas revelando nele o ímpeto para buscar seu caminho, e no seu meio, o caminho coletivo, enquanto o mundo repetia - e segue repetindo - os mesmos incêndios, as mesmas violências, em sua manutenção definitiva de uma sociedade construída para ser desigual.

Ao final da obra sua história é contada para crianças pretas ao redor do mundo. Quando todas se levantam e clamam "Eu sou Malcolm X", não se trata de um apaixonado atestado de heroísmo ou nobreza, mas da transformação espiritual final pela qual ele passa: de um único indivíduo de carne para a inexorável resistência herdada por todos que prosseguem.

Excelente

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