CRÍTICA | O Terminal

Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Sasha Gervasi e Jeff Nathanson
Elenco: Tom Hanks, Stanley Tucci, Catherine Zeta-Jones, Diego Luna, Zoe Saldana, entre outros
Origem: EUA
Ano: 2004


O "não-lugar", termo cunhado pelo antropólogo Marc Augé, se refere a espaços desprovidos de qualquer circunstância personalizante. Exemplos imediatos são locais designados ao tráfego humano, espaços públicos de circulação onde não se permanece, mas por onde se atravessa. São caminhos, mas não destinos, como rodoviárias, metrôs ou aeroportos. Todavia, é neste território alienado de individualidades enquanto também um suposto receptáculo para todos os perfis, que Steven Spielberg (Prenda-me Se For Capaz) delimita quase a totalidade de O Terminal (The Terminal). O palco estabelecido é um não-lugar, onde o protagonista Viktor Navorski (Tom Hanks) se vê preso após escorregar para dentro de uma brecha de regulamento.

Ocorre que, durante seu voo, o país fictício de Viktor, Krakozhia, passou por uma revolução, e direitos formais de trânsito entre nações foram suspensos. Sendo assim, os Estados Unidos  - especificamente Nova York, local onde a história se passa - não reconhece o novo corpo político como nação, impossibilitado o protagonista de voltar ou adentrar a cidade. Viktor flutua acima e abaixo da plasticidade das fronteiras e leis internacionais, se tornando também um problema para a promoção do chefe de segurança do aeroporto, Frank Dixon (Stanley Tucci), cujo nome já escancarada sua posição de antagonista antipático.

A trama se desenrolada entre peripécias e quase esquetes de tentativas de Viktor para se manter naquele ambiente - uma vez que não quer entrar no país como foragido político - ao mesmo tempo em que cativa os corações de outros empregados do aeroporto. Lojistas, faxineiros, guardas e fiscais se juntam a ele para passar o tempo e compartilhar aflições, além de colaborar nos estratagemas para cortejar a aeromoça Amelia Warren (Catherine Zeta-Jones). No meio disso tudo, Dixon tenta convence-lo a burlar a lei, tornando-o problema dos outros.

Foto: DreamWorks

Os ares de Spielberg sempre têm uma quase infantilidade na ânsia bruta de exploração, seja dos resultados, das possibilidades, mas principalmente dos lugares. Assim, O Terminal se esforça para expandir ao máximo a cosmogonia daquele ambiente através do olhar dos que não partem em seus aviões, ou seja, os funcionários, grande parte deles estrangeiros como o latino Enrique Cruz (Diego Luna) ou o indiano Gupta Rajan (Kumar Pallana). As infinitas promessas do capitalismo estadunidense nunca se concretizam para essas pessoas, de alguma forma impossibilitadas de acessar a cidade além dos portões e desprendendo a maior parte de seu trabalho e esforço a um "não-lugar". A coletividade dessas experiências, contudo, passa a consolidar uma expressão própria que só poderia culminar na assimilação de um homem sem pátria.

Apesar de um terreno frutífero e interessante para esgarçar conflitos sobre nação, fronteiras e empatia entre marginalizados pela própria origem, o filme rapidamente se desvincula, muito ironicamente, de qualquer personalização, se tornando um trabalho genérico, sem identidade particular ou sequer opiniões.

Apesar do apelo do carisma de "queridinho da América" de Tom Hanks (O Resgate do Soldado Ryan), Viktor é uma grande massa gelatinosa de nadas. Ele rapidamente aceita e supera o jogo de poder ocorrido em sua terra natal, mas não emite opiniões sobre isso, lembranças, esperanças. O país que o originou não parece ter qualquer efeito sobre ele além de indicar que começa a história sem saber falar inglês e, claramente, tem reações patetas ao lidar com recursos "modernos" como... uma televisão? Ele não sabe direito como funciona uma televisão?

Na medida certa para agradar todos os públicos Viktor é bobinho, mas esperto o bastante para, sozinho, conduzir reformas de construção, estudar o idioma local, montar painéis artísticos de azulejo. É ingênuo sobre como interpretar as pessoas, mas malicioso o bastante para enganar seu interesse amoroso sobre as circunstâncias de seus encontros. 

Foto: DreamWorks

Além de tudo, Viktor sofre por mais de nove meses aprisionado politicamente no aeroporto em uma desventura kafkiana, mas é movido por uma causa extremamente nobre e altruísta que remete ao seu falecido pai. O personagem estrangeiro é, contraditoriamente, um ideal fantasioso estadunidense posto em prática. Não é a toa que a maior parte da obra se dedica ao flerte com uma personagem cujo único conflito remonta a insatisfação de seus relacionamentos amorosos com outros homens. O que está posto em cena para o espectador simpatizar com o protagonista é essa força unificadora e singular do desejo de ser bem sucedido em seu cortejo amoroso e conquistas a recompensa suada: uma parceira amorosa. 

Essa trama se sobrepõe tanto a qualquer outro cenário sugerido que temos, inclusive, um paralelo com Enrique Cruz flertando com Torres (Zoe Saldana) através do amigo estrangeiro. Como prêmio por uma ideia bem executada e mirabolante ao invés de encarar de frente sua amada, ambos se... casam (?????). É uma escolha bem questionável e potencialmente retrógrada, mas não é como se o protagonista fosse conquistar Catherine Zeta-Jones (Doze Homens e Outro Segredo) por meio de mentiras também.... não é mesmo?

O problema não é propriamente a irrealidade de Viktor enquanto personagem, mas como sua personalidade contradiz o próprio conflito imposto pelo filme. Anula-se toda questão política-social, afinal nunca sabemos mais sobre o passado dele além de sua nobreza e pureza. Qual sua condição financeira em seu país? Qual sua posição sobre a revolução que tomou conta de sua pátria? Se ele comemora no final, não sabemos se é por abominar o ato revolucionário ou por só querer voltar para casa, ignorando todo o espectro de problemas derivados de uma imensa crise política diante dele.

Toda a jornada que o espectador acompanha, desse modo, soa muito mais como uma aventura cartunesca para escapar do cerco de um vilão - que, apesar de careca, só não é mais apresentado como caricatura devido ao tom comedido ao segurar tremeliques de Stanley Tucci (Um Ato de Esperança).

Foto: DreamWorks

Um "não-lugar" se trata de um espaço, no entanto, um sem princípios próprios que o distinguam. Talvez O Terminal se configure, sob este olhar, como um "não-filme" de Steven Spielberg.

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