CRÍTICA | O Doutrinador

Direção: Gustavo Bonafé
Roteiro: Gabriel Wainer
Elenco: Kiko Pissolato, Eduardo Moscovis, Natalia Lage, Helena Ranaldi, entre outros
Origem: Brasil
Ano: 2018


A primeira reação ao assistir ao trailer de O Doutrinador foi de receio. Sem conhecer o conteúdo da HQ que inspirou o roteiro escrito por Gabriel Wainer (Rio Mumbai), é natural que a mistura de tópicos de violência e estrutura política no Brasil soem suspeitos em um país à beira de naufragar em um profundo desmonte das instituições governamentais, seduzido por um discurso fácil de arrematar a solução pela destruição.

É ainda mais desconcertante constatar que, durante uma boa parte do primeiro ato, não se sabe ainda dizer sobre que posicionamentos políticos o filme está querendo advogar. Qualquer conversa sobre uma observação neutra da realidade, que não busca postular ações, mas apreender as circunstâncias de maneira isenta é balela, ilusão pura. Precisamos com urgência abandonar essa fantasia manhosa de que a política é uma partida de times com resultados claros e o resto é a vida. Todas as nossas escolhas, procuras e demandas são atravessadas por valores e prioridades que construímos no sentido de buscar algo além. Todas as lutas das quais nos omitimos, mesmo escutando os gritos audíveis daqueles que precisam de auxílio e suporte, assim como quais as batalhas que optamos travar são intervenções políticas nossas no mundo.

Até ser desafiado pelas circunstâncias, Miguel (Kiko Pissolato), não questionava as propriedades de seu ofício como agente de uma divisão de operações especiais. Contribui para uma reintegração de posse sem entender por quais motivos pessoas desabrigadas se acumularam naquele lugar, sem pensar a gravidade da questão habitacional no país. Mas é óbvio que não faria isso, pois como nos recorda o personagem do governador Sandro Correa (Eduardo Moscovis), "ninguém lembra de nada nesse país depois de seis meses". Mesmo quando conduz o político acusado de desviar montante da verba da saúde para o próprio bolso (enquanto no interrogatório fica mais preocupado nas lanchas e amigos em Miami), não é importante para Miguel, se não por uma pequena glória que compartilha com sua filha pequena, até que a criança é vítima de uma bala perdida e morre, na fila de um hospital caótico.

Foto: Downtown Filmes

Toda a sequência soa desesperada em perfazer todas as condições para obter o selo de filme do gênero super-herói, traçando a jornada clássica de uma narrativa de origem. Sem polpar tempo, Miguel repentinamente se torna o Doutrinador, uma espécie de Justiceiro (The Punisher) que tem como alvo as grandes cúpulas corruptas do Brasil. Claro que nomes e partidos são ficção, mas é fácil intuir o que não é, quando reconhecemos um discurso tão familiar nessas figuras tomadas pela própria vaidade: falam de cura gay, de bíblia, de fazendas, de seguir os desígnios do "cidadão de bem".

É mais ou menos nessa parte que tudo fica mais interessante, levando a um segundo ato razoavelmente sedutor. Todos nesse filme brincam de Deus. O inimigo, o anti-herói, sua coadjuvante, o diretor. A máscara que se torna símbolo do assassino surge aos seus pés do nada. A gravidade equivale a pular corda. "Hackear" é um verbo que permite basicamente qualquer coisa. A cidade está vazia quando necessário aos personagens e entupida quando o contrário. Explosivos para destruir um arranha-céu surgem só na hora de fazerem seu serviço. Se em algum momento o personagem está encurralado, basta uma elipse para livrá-lo desta situação e percebemos que ele já escapou.

Pode parecer absurdo, mas é neste desencontro com as regras que O Doutrinador se aproxima de seu D.N.A enquanto HQ, nos moldes norte-americanos de herói. Sobre isso, algumas colocações se encaixam ao nosso contexto (polícia militar não serve para nada nesse país, empresário se eleger político é piada pronta, a Marília Gabriela realmente parece a Cármen Lúcia no STF), outras são quase imaturas (qualquer slow motion, todas as sequências com manifestações, tudo sobre hackers). Não poderia deixar de ser, uma vez que a postura de vigilante assumida pelo longa tem como vislumbre vesti-lo como a um Batman. Felizmente, tal como o homem-morcego, as ações do Doutrinador nunca são ovacionadas, nem por um público delirante, nem por aqueles que contribuem para sua sequência de homicídios, e isto é um acerto da obra.

Foto: Downtown Filmes

Tramas políticas envolvem um raciocínio muito mais ardiloso do que a pura punição nos permite aceitar, ainda que seja fácil de se identificar, enquanto brasileiro, com uma frustração brutal pelos poderes públicos ao ponto de ceder para a barbárie. Não é estranho a fantasia por um herói obtuso que sacie esta fúria de traição pela arma.

Acontece que usar a arma - e fica então mais claro do que nunca como Miguel é um policial - é usar a principal ferramenta dos que estão no poder, dos empresários que se regojizam com trâmites de campanha apontando o dedo para quem irão financiar com recursos milionários. Não por menos, o protagonista se torna refém daqueles que deseja destruir e chega ao ponto de apontar uma arma para a oponente política deles. Novamente, essas figuras de justiça encorporadas tanto em instituições, quanto em desertores, podem até estar tentando efetivar uma mudança positiva, mas por uma mudança do tabuleiro tornam a ser meros capatazes do trono.

O Doutrinador então se conclui como uma anedota adequada, apesar de um discurso bobo no terceiro ato, que mesmo assim não está equivocado quando recorda que a sordidez deste país vem desde o berço esplêndido. Não é uma corrupção, pois permanece puramente o que sempre foi. Ele nutre ódio e desilusão pelo que o sistema lhe prometeu garantir e com escárnio lhe negou, assume medidas agressivas para promover uma transformação sem perceber que é inútil destruir pessoas, sempre haverá alguém na fila para repor a posição e ganhar poder ao apontar o revoltoso como origem do problema. Daí mais armas nas ruas, mais violência, mais descaso e assalto aos serviços de direito da população. Não é um tiro na cabeça que vai salvar esta nação. Quem sabe o banho mais longo da história, para que a água se encaminhe até as entranhas de quem somos e resgate valores humanos carcomidos pela putrefação. A máscara de gás como visual do protagonista se torna uma escolha apropriada no final das contas.

Regular

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