CRÍTICA | Mank

Direção: David Fincher
Roteiro: Jack Fincher
Elenco: Gary Oldman, Amanda Seyfried, Charles Dance, Lily Collins, Tom Burke, entre outros
Origem: EUA
Ano: 2020

Passados 6 anos do seu último lançamento - período em que se dedicou à série Mindhunter -, David Fincher (Garota Exemplar) retorna ao cinema, dessa vez dirigindo aquele que pode ser considerado o projeto mais pessoal de sua carreira. Isso porque Mank (2020) é uma paixão antiga de seu falecido pai, Jack Fincher, que na década de 1990 escreveu o roteiro do filme e tentou - sem sucesso - produzi-lo. Fincher, o filho, então resgata o trabalho de seu pai e produz o filme com a Netflix.

Mank se passa na Hollywood da década de 1930, onde acompanhamos a história real de Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman), roteirista que mais tarde venceria o Oscar junto com Orson Welles (Tom Burke) pelo icônico Cidadão Kane (1941). O fato de ambos terem recebido o prêmio pelo roteiro é uma polêmica discutida por décadas, e que origina o filme de 2020. Mankiewicz, até o fim de sua vida, dava indiretas de que Welles não havia tido participação na escrita, mas recebia os créditos por uma convenção da época. Mais tarde, documentos revelavam que Welles teria dado contribuições a partir da segunda revisão do roteiro, e, portanto, teria direito a parte do crédito, ainda que Mankiewicz nunca tivesse concordado com as alterações.

É importante frisar que David e Jack Fincher tomam partido da visão de "Mank" (diminutivo pelo qual Mankiewicz era conhecido) da história, o que pode incomodar a parte do público que presa pela fidelidade dos fatos, mas em nada diminui a qualidade da produção.

A narrativa é dividida em duas linhas temporais: o presente de 1940, quando Mank esteve isolado em um rancho para focar na conclusão do roteiro em 60 dias; e o passado ao longo da década de 1930, visitando os eventos que certamente inspiraram o texto de Cidadão Kane. As idas e vindas no tempo são muito bem demarcadas por Fincher, que utiliza da tecnicalidade da escrita de um roteiro propriamente dito para estabelecer o momento que estamos vivenciano. Por isso, é comum ao longo do filme ouvirmos o som da máquina de escrever digitando na tela o local em que a cena se passa, se é dia ou noite, e o ano da cena.

Netflix

A princípio, a marcação de cada cena poderia soar maçante, quase como uma narração em off, mas o longa jamais soa desinteressante ao espectador. Isso graças não apenas ao ótimo trabalho de montagem de Kirk Baxter (A Rede Social), mas também a agilidade e precisão do roteiro de Jack Fincher, que faz com que todo diálogo soe relevante para a história que está sendo contada. Também auxilia para isso a trilha sonora da dupla Trent Reznor e Atticus Ross (Millennium: Os Homens Que Não Amavam as Mulheres), que imprime leveza e frescor à narrativa sem perder o requinte da era de ouro de Hollywood (um tom bem parecido com o que vimos na série Mad Men, ainda que estejamos falando de décadas diferentes).

Evidentemente a ambientação é fator chave aqui, e a cinematografia em preto e branco de Erik Messerschmidt (Mindhunter) é sublime em transportar o público para aquele momento no tempo, sempre valorizando as sombras e os pontos de luz em cada cena, de forma a remeter ao próprio Cidadão Kane, mas sem perder identidade própria. Nesse ponto, é engraçado como Mank passa a sensação de estarmos assistindo um longa-metragem da década de 1930/40, mas com o apuro técnico e a condução exemplar de Fincher, que é um dos mais modernos diretores de nossa geração.

Para mim, soam exageradas apenas algumas inserções que o diretor faz na imagem, como as manchas escuras que surgem em tela para simular o desgaste do rolo de projeção. Um excesso de zelo que nos tira da imersão e nos faz lembrar que estamos assistindo a um filme contemporâneo que quer emular um clássico.

Além dos aspectos técnicos, Mank se sustenta principalmente na excelente atuação de Gary Oldman (O Destino de uma Nação), que deve aparecer muito forte na temporada de premiações. A presença de tela e o carisma do ator é indiscutível, mas os maneirismos físicos e, especialmente, o trabalho de voz com que vive Mankiewicz, dão vida ao personagem de forma singular. O fato de conseguirmos simpatizar com o protagonista mesmo em seus defeitos (e há vários, como o alcoolismo, por exemplo) é essencial aqui, já que o mesmo está presente em praticamente - se não - todas as cenas da produção.

Aliás, é difícil apontar alguém que esteja fora de tom aqui, pois todo o elenco está muito bem. É preciso destacar, no entanto, Amanda Seyfried (Fé Corrompida), que vive Marion Davies. Acho que é seguro dizer que a atriz entrega a melhor atuação de sua carreira até aqui. A química com Oldman é excepcional e a relação fraternal construída entre personagens ao longo da projeção é um dos pontos altos do filme. Davies, aliás, é a principal inspiração para a segunda esposa do protagonista de Cidadão Kane, não apenas em personalidade, mas na trajetória de vida semelhante. A segunda inspiração é a própria esposa de Mank, que dá nome à personagem do filme de 1941: Susan.

Netflix

As inspirações que influenciaram o roteiro da obra-prima dirigida por Welles, aliás, sempre surgem de forma elegante em Mank, como quando vemos o protagonista e Davies passeando pela zoológico do magnata da MGM Louis B. Mayer (Arliss Howard) - uma clara inspiração para Xanadu, a mansão/fortaleza de Charles Foster Kane -, ou mesmo quando Welles se revolva ao tomar conhecimento que Mankiewicz quer crédito pelo roteiro, mesmo tendo concordado em não tê-lo quando assumiu a escrita - essa mais evidente e citada pelo protagonista em cena.

No fim, Mank ainda é um filme sobre sucesso e ruína, sobre as agruras de um homem talentoso e de personalidade forte, ciente de seus defeitos. A trajetória de um personagem humano, que precisou brigar por reconhecimento e o conquistou, ainda que não tenha conseguido vencer seus próprios vícios, que o levaram a falecer com apenas 55 anos.

É certo que o nome de Herman J. Mankiewicz não é tão lembrado hoje em dia como o de Orson Welles, o que talvez explique a predileção dos Fincher por contar apenas o seu lado da história.

Ótimo

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