CRÍTICA | Três Verões

Direção: Sandra Kogut
Roteiro: Sandra Kogut e Iana Cossoy Paro
Elenco: Regina Casé, Rogério Fróes, Gisele Fróes, Otávio Müller, entre outros
Origem: Brasil / França
Ano: 2019

Choca imensamente que ainda não seja caso de fórum público a discussão sobre o desalmado cativeiro no qual Regina Casé (Eu Tu Eles) está feita prisioneira desde 2015. Após o sucesso de sua personagem Val, no filme Que Horas Ela Volta? - dirigido por Anna Muylaert - alguns setores da classe artística tomaram gosto na narrativa de personagens marginalizados, mas extremamente próximos de suas vidas: as empregadas domésticas. Um grupo profissional muito pouco protegido por leis trabalhistas, realidade crescente do Brasil dado o crescimento de ofícios informais na angustiante odisseia de completar a renda toda mês.

O grande problema que se evidencia é tão recorrente quanto a escalação da Casé neste cenário. Apesar de falsamente colocar a empregada no pódio de protagonista, dessa vez, Madá (sua personagem), é grosseiramente bidimensional e mal sofre alguma transformação durante o decorrer da trama, servindo mais como ponto de vista para a transformação na vida dos patrões, estes sim repletos de dilemas e incertezas. Toda dúvida e vontade da personagem surge caricata. Assumindo uma certa hierarquia diante dos outros empregados da mansão do casal Edgar (Otávio Müller) e Marta (Gisele Fróes) e alimentando ambições empreendedoras de um quiosque de beira de estrada bem questionável, Madá poderia ser o intermédio entre as posições do empregado e do milionário, escapulindo de uma leitura maniqueísta. Essa possibilidade é imediatamente descartada diversas vezes pela obra, que opta por sequências bobas da família despejando frases vilanescas, trazendo sempre o subtexto para a camada do texto explícito.

Foto: Vitrine Filmes

O nome, Três Verões, remete a um período de três anos, sempre na mesma época do verão onde o casal abriga familiares e amigos para uma grande celebração que é interrompida nos anos seguintes pela prisão do patriarca, comprometido por um esquema de corrupção. Segundo a sinopse oficial, Madá vivencia a decadência de um casal vítima do sonho neoliberal, mas isto simplesmente não condiz com a história apresentada. A disrupção da família vem como consequência de um homem que, criminoso e flagrado, descumpriu o pacto neoliberal (ao menos o de não ser pego), não como uma ilusão interrompida do capitalismo. Mais tarde, o filme mostra, inclusive pelo olhar dos empregados, mãe e filho apreciando uma estadia na Europa e a casa sendo reformada para confortar melhor Edgar, condenado a prisão domiciliar. Soa, de forma bem nítida, que o problema não é o sistema, mas sim traí-lo. Ou seja, contanto que jogue de acordo com as regras, nada de ruim deve te acontecer.

Madá, aliás, é muito mais vítima do sistema neoliberal do que o casal. Seus sonhos empreendedores são varridos pelas investigações sobre o patrão e mais tarde narra em uma sequência muito emotiva a forma como abruptamente perdeu sua família devido a negligências de várias partes mais poderosas que ela. A personagem está constantemente resignada e quando, de certa forma, se revolta junto aos colegas empregados que ficam cuidando da casa abandonada, enquanto Edgar, preso, não lhes paga o salário devido. A mudança é muito brusca (praticamente de um corte seco a outro), tirando o poder satisfatório dessa realização e emponderamento.

Outro problema nítido é que, mesmo já tendo se mostrado uma ótima diretora para manejar um elenco plural, como fez em Campo Grande (2016), Sandra Kogut (Mutum) simplesmente não consegue conter a força torrencial de Regina Casé, esta numa eletricidade quase obsessiva em que passa por cima da fala de qualquer um e fica desenvolvendo as próprias falas e gracejos sem ser impedida por nada, devorando assim todos com quem contracena e tirando do resto do elenco a expressão. Uma pena, pois a personagem de Jéssica Ellen (Totalmente Demais), Vanessa, visivelmente mais aflita e consciente das divisas que separam a cozinha e a sala de estar daquela mansão, poderia oferecer tudo que Madá não oferece. 

Foto: Vitrine Filmes

Isso pois se gasta tempo de tela demais com um humor humilhante e repetitivo onde Casé o tempo todo está falando errado, não sabe se comunicar em inglês ou pronunciar nomes de aplicativos sem parecer uma esquete estapafúrdia do Zorra Total ridicularizando pobre. Ironicamente aqueles que mais se dobraram de rir à mais sutil sugestão de mais uma fala abobalhada de Madá (poxa, ela nem sabe o que é um samurai, que engraçado como ela é burrinha) eram também materialmente muito mais aproximados do casal de patrões.

Existem ideias genuinamente interessantes, como a relação que Madá estabelece com o pai de Edgar, Seu Lira (Rogério Fróes) ou a revolta dos funcionários que passam a aproveitar a estadia de uma casa que os moradores originais dispensaram, mas tudo se dissolve no amargo apanhado de risos energéticos diante de cada pronúncia errada e sotaque forçado que Regina Casé é levada a fazer, mesmo estando também fazendo isso todos os dias na atual novela das nove na Rede Globo, Amor de Mãe.

Se as classes mais abastadas querem mesmo fazer filmes sobre seus empregados, precisam melhorar muito e avaliar como, em descompasso com o discurso vigoroso da luta de classes, seguem desumanizando aqueles com menos recursos para se expressar.

Regular

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