CRÍTICA | Cowboys

Direção: Anna Kerrigan
Roteiro: Anna Kerrigan
Elenco: Steve Zahn, Jillian Bell, Sasha Knight, Ann Dowd, entre outros
Origem: EUA
Ano: 2020

Crescer sendo uma criança LGBTQIA+ é um bom equivalente à estradas sinuosas encaminhando a paisagens de pura plenitude, tal como os planaltos que abrem o longa da diretora Anna Kerrigan (Five Days Gone). Isso porque, por mais desgastante e perigoso que seja o percurso, é inimaginável a tranquilidade inédita que invade o corpo ao se deparar com um novo cenário, uma nova possibilidade, aceitando os planaltos e correntezas como parte do mundo assim como quem os vislumbra. É um sentimento tão incontornável que já não resta outra resposta a não ser enfrentar tudo para poder se assimilar à própria natureza.

Portanto, não só as locações de Cowboys trazem para a materialidade o conflito da travessia interna, como a escolha acertada de permitir que o menino transexual Joe (Sasha Knight) fosse trazido a vida por um ator mirim também trans. Toda a inteligência emocional que acaba se desenvolvendo no desafio de investigar a própria identidade, se revestir dela e rejeitar as imposições da norma cisgênero, transpira pelos poros de Joe, um jovem fascinado com histórias de cowboy e apegado a seu pai, Troy (Steve Zahn), com quem inicia o filme fugindo. Acontece que Troy, por vezes, parece ser menos esperto que o filho, sofre de transtorno bipolar, mas é o único que aceita sem meios-termos a realidade do menino.

Esta dupla complemente vulnerável e amorosa segue pelas florestas de Montana apenas com uma vaga estratégia de chegar ao Canadá. A situação se agrava quando a mãe do menino, Sally (Jillian Bell), dá queixa na polícia local como sequestro. Quando solicitada sobre fotos da criança desaparecida, Sally entrega um retrato de Joe com cabelo longo e vestes femininas, ainda incapaz de reconhecer o gênero do filho e vendo nisso somente uma fantasia alimentada pelo ex-marido, sobre como homens são.  Contudo, Sally também tem suas fantasias sobre o que são mulheres, e estas são respaldadas por todas as instituições que os circundam - família, comunidade, igreja. O vestido e o feminino se tornam um ponto comum para ela conseguir alcançar sua criança, o que torna aceitá-lo no reino masculino selvagem dos cintos de couro e armas de fogo uma exigência ainda mais dolorosa.

Synapse Distribution

Onde o filme cresce é justamente nesta atenção aos sentimentos de todos os personagens envolvidos. A resolução de gênero de Joe se torna estopim de conflitos de ego entre os pais, ambos com dificuldades para fornecer um modelo exemplar de espécie-mãe e espécie-pai. Não há apropriadamente qualquer vilão na história, mesmo da parte da detetive (Ann Dowd) que busca os rapazes. O que preenche estes espaços abertos das feridas não são atos de maldade, mas inseguranças e falhas de comunicação. Mesmo atos de proteção se convertem em manifestações de violência, porque há algo ausente ali no caminho entre a intenção e o resultado.

Mas é também na naturalidade desse conflito que se perde muito conteúdo do próprio Joe, que por vezes parece à par das complexidades que o rejeitam e o moldam. Outras tantas surgem, mais como um obstáculo ambulante do que como um personagem. É justificável que, por ser uma criança, suas ações não são pautadas na mais clara das lógicas, no entanto, por mais de um momento ele está ali menos por motivação e mais como causa de novos problemas para a travessia já tortuosa e improvável dele e do pai. Acaba que muitas das discussões e disputas sobre gênero ficam nas camadas mais superficiais possíveis (vestido x calça, boneca x arma de brinquedo, cabelo longo x curto), como um modo de antagonizar o então casal, sem esclarecer o que Joe quer, contradizendo-se, passando uma imagem confusa contrária ao que ele mesmo mostra em outros momentos.

A decupagem da história também prejudica a progressão do envolvimento afetivo, interrompendo cada instante em que o espectador está mais próximo das autenticidades e carinhos dos envolvidos na trama, para justificar o que estávamos vendo. Nisso já se perdeu a relevância que teria para a cena anterior, as vezes por uma mera questão de montagem. E ainda mais porque os flashbacks tornam as elipses pouco refinadas e a linha geral do tempo difícil de apreender.

Synapse Distribution

Cowboys é uma grande notícia só por existir e trazer um olhar terno sobre uma família se ajustando e se redescobrindo. Cada um deles, arrastados para dentro de si para entenderem o que se passa por fora. Porém também desponta como uma obra de sabor incompleto, pouco fermentado. Faltaram cenas que ocupassem com mais calor esses abraços entre pai, mãe e filho, faltou uma montagem mais competente, faltaram pequenos elementos para que o final não soasse tão merecido, para a compreensão mútua que todos alcançam vir mais porque a história precisa terminar do que porque seria a única solução.

Bom


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