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Postado por
Gabriel Galvão
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Na Idade Média europeia, os assentamentos urbanos que já eram protótipos do que chamamos de cidade na atualidade, não dispunham de uma grande variedade de ofertas de entretenimento. Foi um período relativamente tedioso da história humana se excluirmos as guerras, invasões e epidemias. Mas uma particularidade que se destaca inclusive pela durabilidade é a presença das igrejas como centros agregadores dentro destes núcleos de cidades embrionárias. As igrejas desempenhavam uma função fundamental de socialização entre seus frequentadores, sendo tanto um ambiente para a adoração religiosa quanto para o lazer, entretenimento e interação social dos cidadãos. Eram construções exuberantes que se destacavam como referência. Daí se tira a comparação tão clara que Retratos Fantasmas faz entre as igrejas e os cinemas de rua, territórios do espetáculo para a comunidade.
O novo filme de Kleber Mendonça Filho (Bacurau) é um documentário que investiga por meio de materiais de arquivo, fotos, recortes de jornal e até mesmo da própria filmografia da carreira do diretor, os rastros e dejetos de um modo de vida pernambucano - por extensão, brasileiro - que se acabou, sem fazer de Retratos Fantasmas qualquer tipo de eulogia fúnebre. E é possível que sua maior força esteja em não se satisfazer em um tom de lástima, mas sim em preencher as memórias de humor e ternura.
A imensa maioria das fotos analógicas que podem ser vistas hoje em dia guardam retratos de pessoas mortas, de coisa que não é mais, de sujeitos inexistentes. São uma presença fantasmagórica, sim, mas a contradição também nos lembra que são provas cabais de como o passado foi vivido, foi celebrado, foi levado para a folia. Um séquito de mortos ou envelhecidos segue a procissão carnavalesca dos blocos pelo centro da cidade, deixando ali pegadas insolúveis.
Vitrine Filmes |
A narração do cineasta é uma voz constante que guia o passeio pela arquitetura dolorosa de Recife, começando pela rua de sua casa, onde filmou a imensa maioria de seus filmes, até o centro da cidade, onde dois cinemas de rua outrora se encaravam rivais, afastados pelo Rio Capibaribe e conectados pela Ponte Boa Vista. Há um riquíssimo acervo de imagens e um trabalho elegante de resgate e curadoria desse material, permitindo ao espectador não apenas conhecer a história das exibidoras de atividade já encerrada como o Trianon, mas também de um certo projecionista que dormia no chão porque era mais fresco, ou um herói local que precisava vender como camelo lixo hollywoodiano de posteres e releases para se sustentar.
É um caminho muito recompensador para o tipo de visitação tão íntima que Kleber propõe, pois parte de vértices específicos da Recife que experimentou em juventude para expandir a conversa para a experiência das cidades como um todo, de seus polos de cultura, da diáspora dos centros para zonas mais gentrificadas, movimentos reconhecíveis de capitais que se reestruturavam e deixavam muitos esqueletos arquitetônicos no caminho de seu projeto de desenvolvimento. Os corredores, grades, alçapões, ganham um contorno espectral diante do registro, as assombrações de cinemas inicialmente planejados para concentrar propaganda fascista estendem seu reino de horror até a chegada do braço forte da censura ditatorial. Todavia, também há um embevecido encanto pelos vitrais, pelas cortinas, pela visão panorâmica da região.
Já ao final, quando traça a jornada completa e testemunha as salas de cinema se converterem em igrejas, aproveitando-se inclusive da estrutura e assentos, as falas já passam a soar mais desconexas e redundantes, sugerindo pontas soltas na coesão e uma sensação de que não se sabia mais o que dizer. Mesmo o desgaste no final não perturba os vivos e mantém os mortos dentro dos retratos fantasmas felizes, invisíveis, mas em toda as ruas do Recife também.
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