CRÍTICA | Trem-Bala

Direção: David Leitch
Roteiro: Zak Olkewicz
Elenco: Brad Pitt, Joey King, Aaron Taylor-Johnson, Brian Tyree Henry, Hiroyuki Sanada, Michael Shannon, entre outros
Origem: EUA/Japão
Ano: 2022

Quando a voz da agente Maria Beetle (Sandra Bullock) anuncia, ao início do filme, que o codinome para a nova missão do agente interpretado por Brad Pitt (Era Uma Vez em... Hollywood) será Ladybug (Joaninha), ele logo aponta a ironia perversa, pois se considera um homem profundamente azarado. Porém, as definições de sorte e azar, tanta dele, quanto do espectador serão bastante desafiadas ao longo do percurso do Trem-Bala (Bullet Train) que segue imperturbável até Kyoto, apesar de todo o caos que se desenrola em seus vagões.

Ladybug tem como objetivo roubar uma maleta com o resgate em dinheiro pelo filho do chefe russo da yakuza Morte Branca (Michael Shannon), que está sob os cuidados dos assassinos de aluguel Limão (Brian Tyree Henry) e Tangerina (Aaron Taylor-Johnson), enquanto Kimura (Andrew Koji) está caçando entre os assentos da classe executiva a pessoa que tentou matar seu filho pequeno.

O que se apresenta como uma tarefa simplória vai ganhando contornos cada vez mais catastróficos quando cada vez mais personagens vão embarcando no trem, motivados por vingança, ganância e ambição. Enfiado em inúmeras sequências com monólogos estoicos e ameaçadas pomposas de sede de sangue, Ladybug na verdade está em uma reabilitação espiritual, tentando se purificar com sessões regulares de terapia, não buscando a morte como solução de modo algum. O problema é que sua sorte/azar simplesmente leva as pessoas a morrerem ao redor dele, mesmo que ele permaneça vivo e consideravelmente intacto para quantidade de catástrofe que lhe ocorre.

Sony Pictures

Sua curiosa tendência a ter o acaso operando ao seu redor parece um desdobramento mais elaborado e caótico do superpoder da personagem Domino no filme Deadpool 2 (também dirigido por David Leitch, e com a interpretação de Zazie Beetz, também presente em Trem-Bala). Só de estar ali naquele trem já foi obra de coincidências, já que foi um substituto de última hora para outro agente que meteu atestado antes do trabalho e ficou em casa. Seria destino ele estar ali, logo com aquele elenco de personagens completamente violento? Ao acreditar apenas na sorte, não tem nada que explique além do capricho das circunstâncias. Mas ele teria um papel a desempenhar na trama daqueles trilhos? Ao creditar os acontecimentos ao destino, só restaria aceitar que sua presença é parte de algo maior. Nenhuma alternativa é verdadeira, ao mesmo tempo em que todas são.

Eventualmente outros personagens trazem a perspectiva de um destino profético que selou aquela noite, mas a grande brincadeira do filme é que ele em si é a divindade do acaso. Como personagem de uma história, Ladybug possui um papel por simplesmente estar ali. Há um objetivo na trama, costurado por aleatoriedades pouco plausíveis da vida que são a matéria-prima do cinema. A autoconsciência se esparrama pela forma mesmo como a quarta-parede é ignorada em flashbacks ou o passado se torna constante parte do ato presente ao justificar as cenas anteriores, despedaçando o tempo e permitindo que diferentes linhas cronológicas intercedam pelo mesmo conjunto de ação. É uma grande sabatina de continuidade retroativa. O próprio cenário vai se tornando cada vez mais um ambiente performático como um palco à medida que outros passageiros e trabalhadores do trem desaparecem.

As cores em neon brilhante e explosões sortidas a qualquer momento deixam a ação coreográfica subalterna à sua estética. Conduzem com os olhos toda histeria visual em cenários bastante contidos até para a escala crescente de risco que vai caminhando pela história. Isso sem jamais perder o charme da fisicalidade elaborada, poupando ao máximo o espectador de efeitos especiais e investindo com tudo no efeito prático pelo qual o diretor é tão conhecido desde o sucesso de John Wick: De Volta ao Jogo (que ele co-dirigiu). O único desafio acaba sendo justamente esse ritmo desenfreado, já que a falta de dosagem de perigo e recompensa vai levando para um terceiro ato enfraquecido pela falta de fôlego da audiência. Em certo momento há toda uma sequência que mistura revelações de final de um livro de Agatha Christie (Assassinato no Expresso do Oriente, com certeza), com uma luta à lá Em Ritmo de Fuga ritmada por uma versão japonesa de "Holding Out for a Hero". É um êxtase puro, mas não saber onde parar vai encaminhando a trama para algo menos satisfatório do que seus maiores picos de energia. Se acelerar sem parar, haverá consequências (dentro e fora do filme).

Sony Pictures

O mesmo pode se dizer do senso de humor aplicado, que estabelece sequências incríveis e certas punch lines de piadas que você nem sabia que estavam sendo plantadas, mas também perde muito tempo se satisfazendo em repetir a mesma piada-referência incontáveis vezes, já que foi o único traço de personalidade dado para alguns em um elenco inchado demais para que todos fossem igualmente interessantes. Uma pena, pois é muito mais acertado e interessante assistirmos como um personagem nítido como Ladybug vai reagir tentando buscar paz interior no meio do completo inferno do que botar a Zazie Beetz (Coringa) no filme apenas para falar "bitch" como Jesse Pinkman e fim.

O excesso sabota certos prazeres de Trem-Bala, porém não impede que a viagem seja de muito bom proveito quando se salta na última estação.

Bom


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