CRÍTICA | Vidro

Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan
Elenco: Samuel L. Jackson, Bruce Willis, James McAvoy, Anya Taylor-Joy, Sarah Paulson, entre outros
Origem: EUA
Ano: 2019


Logo após o primeiro X-Men (2000) e pouco antes de Homem-Aranha (2002) chegar aos cinemas, o diretor M. Night Shyamalan (O Sexto Sentido) havia criado uma história de origem de super-herói exemplar em sua compreensão do gênero. A representação intimista e minimalista dos heróis e vilões das HQs apresentada em Corpo Fechado (Unbreakable, 2000) estava muito à frente de seu tempo e só passou a ser melhor apreciada posteriormente, quando o cinema de quadrinhos e suas fórmulas estavam já bem estabelecidas para serem subvertidas. Foi então que o diretor se sentiu inspirado para lançar uma improvável e inesperada sequência, Fragmentado (Split, 2016).

Agora, em 2019, temos o fechamento dessa improvável trilogia com o lançamento de Vidro (Glass), uma obra que resgata a essência do primeiro filme em suas reflexões acerca do gênero de super-heróis e vilões, que hoje dominam os circuitos de cinema. Por conta disso, é seguro afirmar que o novo longa-metragem dessa chegou no tempo certo. Vidro funciona bem tanto como sequência, trazendo seus respectivos personagens em novas fases de suas vidas e juntando suas narrativas paralelas em uma só, mas também se sustenta enquanto premissa isolada. 

A entrada da psiquiatra Ellie Staple (Sarah Paulson) na trama traz ao espectador uma nova perspectiva, mais questionadora, e consequentemente mais intrigante, que põe em crise tudo que havia ocorrido até então na franquia. Staple acredita que David Dunn (Bruce Willis) e Kevin Wendell Crumb (James McAvoy) não são nada mais que lunáticos com delírios de grandeza, sugerindo que seus poderes extraordinários não são tão fantásticos assim, podendo ser justificados com fatores científicos.

Foto: Buena Vista Brasil

A produção carrega nas tintas entre a fé absoluta do olhar fantasioso e apaixonado do Sr. Vidro (Samuel L. Jackson) e sua principal barreira, o olhar cético e pragmático da sociedade científica representada pela Drª. Staple. É uma batalha a ser conquistada na mente, entre a crença e a explicação. Trata-se de um filme de “super-seres”, onde discute-se a fé na transcendência o tempo todo e retira-se a absoluta certeza da integridade ou corrupção dos atos de seus personagens. 

O trunfo de Shyamalan, afinal, sempre foi testar a crença e a descrença, nossas e de seus personagens, resultando em obras que sempre mantém o espectador questionando a todo momento, por mais frustrantes que sejam as respostas. Além disso, em tempos em que cada super-herói conta com uma pirotecnia específica para manifestar seus poderes em tela, de uma forma sempre muito gráfica e extravagante, o diretor dá novo sentido aos efeitos especiais menos elaborados de sua produção, representando o poderio de seus protagonistas de forma discreta, ao ponto de justamente suscitar as questões que Staple propõe. 

O esforço pela suspensão da descrença, bastante exigida pelos filmes do autor, nunca fez tanto sentido narrativo como agora, nesse universo em que HQs são ridicularizadas por uns e consultadas como enciclopédias por outros. Em uma cultura de ver para crer, não é fácil convencer o público, e Shyamalan sabe muito bem disso. A execução, portanto, não poderia ser mais arriscada para o fim de uma trilogia, especialmente neste fim de década. 

Foto: Buena Vista Brasil

Seu único pecado é que, mesmo depois de enganados, queremos a recompensa, e ele se recusa a dá-la. Não de mão beijada. Com poucas cenas de ação e uma progressão paciente, que planta uma série de pistas falsas pelo caminho, Vidro deve frustrar aqueles que esperam por um grand finale ágil e repleto de embates mano-a-mano, ocultando a maior parte da violência e manifestação dos poderes. Shyamalan mostra-se capaz de fazer muito com pouco e continua dominando o uso do espaço extra-quadro, encarregando nossa imaginação do resto em diversos momentos, como na cena que envolve uma caixa d'água.

O desfecho do longa exige um nível de sensibilidade difícil de encontrar hoje em dia em filmes do gênero. Na verdade, difícil de encontrar em quase todo tipo de cinema que tem sido feito. Exige um desprendimento, uma compreensão e desejo genuíno de ir além dos limites da expectativa. Enquanto a Marvel Studios homogeniza suas produções e a DC/Warner continua sua busca por uma identidade nos cinemas, Shyamalan foi capaz de consolidar um universo de personalidade inconfundível, que deve ser lembrado e discutido por anos.

Tudo é tão inteligente, em seus milhões de tons de cinza, que a participação de Casey Cooke (Anya Taylor-Joy), Joseph Dunn (Spencer Treat Clark) e da mãe de Elijah (Charlayne Woodard), os respectivos sidekicks, são a nossa conexão com o mundo ordinário, mostrando a real extensão da formação do herói: ela não está nos poderes, mas no que ele faz com esses poderes. E ainda que três personagens tenham menos destaque aqui, isso não significa que tenham menos importância perante a narrativa. O nascimento, a crença, a esperança, o esforço, a jornada, tudo o que formou, assim como tudo que mantém, cada um desses seres extraordinários está aliado a uma pessoa comum: uma mãe, um filho, um igual.

Foto: Buena Vista Brasil

Contando ainda com uma trilha sonora natural e fluida dentro de sua narrativa, Vidro fecha com maestria, emoção e justiça uma trajetória que nos lembra sobre o real significado do cinema e a arte de escrever uma boa história. Ainda que essa obra, como um todo, seja muito mais do que uma boa história. Ela é extraordinária, como seus personagens.

Ótimo

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