CRÍTICA | Os Miseráveis

Direção: Ladj Ly
Roteiro: Ladj Ly, Giordano Gederlini e Alexis Manenti
Elenco: Damien Bonnard, Alexis Manenti, Djibril Zonga, entre outros
Origem: França
Ano: 2019


Os Miseráveis (Les Miserábles), indicado ao Oscar de melhor "filme internacional", desbancou o tão bem falado Retrato de uma Jovem em Chamas (Portrait de la jeune fille en feu) na corrida, algo surpreendente para muitos. Fenômeno no Festival de Cannes, o filme é a estréia do diretor Ladj Ly em longas-metragens, mas ecoa o principal curta-metragem de sua carreira, focalizado na hostilidade colapsante da pequena cidade de Montfermeil.

Pegando emprestado o título da mais célebre obra de Victor Hugo, as relações com o texto ficam claras logo após a primeira cena. Enquanto o filme começa com a promessa vaga de uma unidade cultural sob a bandeira francesa, ao celebrar um jogo da seleção nacional na Copa do Mundo, a ruptura vem logo em seguida com uma montagem de elegante desespero onde cada edifício reserva seus conflitos religiosos e étnicos, confrontos velados que podem eclodir ao menor deslize entre muçulmanos, cristãos, gauleses, ciganos, africanos e as forças policiais. A divisão anti-crimes opera à margem de códigos éticos para garantir um pretenso equilíbrio desse frágil armistício, facilmente recorrendo ao abuso de poder e confrontando com o espectador sem hesitação os absurdos reservados no pressuposto de direito do uso força.

Acompanhamos em uma câmera frenética uma modalidade de 24 horas de desespero na jornada desses policiais pelo olhar do integrante novato, Stéphane (Damien Bonnard), e também por meio de sua perspectiva mais inocente (ou por vezes só mais passiva) as urgências de amputar guerras de bairro iminentes, todos perseguidos pelo colapso social de protestos, que se deflagrou realmente na cidade em 2005 após a morte de dois jovens. É quando um dos jovens negros mais caóticos sequestra um filhote de leão de um circo cigano, se tornando em seguida alvo de uma sequência brutal de violências com os policiais em seu encalço.

Foto: Diamond Films

Muito do poder da narrativa reside na escolha arriscada, porém assertiva, de evitar maniqueísmos que apenas atribuem o mal estar daquele ambiente às forças policiais e entender que seus abusos são ações injustificáveis, mas fruto de um ambiente que apodrece as relações sociais enraizadas em um sonho abandonado de paraíso racial. Se em um momento o parceiro policial Chris (Alexis Manenti) é parte integrante da lógica dos comércios marginais, logo em seguida cospe no chão açoitado por outros negros, escancarando sua lógica racista. É claramente aqui que Os Miseráveis se entrelaça com a narrativa melancólica e drástica de Victor Hugo sobre os miseráveis e apodrecidos nas vias de se tornarem gente, mas apenas alçando o status acachapantes de quase-bicho, todos indignados, enfurecidos e desorientados entre crianças entediadas, presidiários e religiosos. 

A câmera se imiscui em toda batalha, em toda discussão e se distribui entre os diálogos numa imersão perigosa onde é difícil responder racionalmente à leituras daquele contexto. A opção do diretor é de inadvertidamente despejar o espectador em meio ao caos como se tivesse nascido ali e não tivesse escolha ou fuga. Apesar de muito bem aplicada em termos práticos e também se beneficiando de uma ótima mixagem, que aumenta e diminui os espaços através de sons por detrás do que se passa no enquadramento, a escolha estética também incorre em caminhos duvidosos.

As repetidas violências cometidas contra o jovem Issa (Issa Perica) criam uma imagética sádica apavorante, ao ponto de em certo momento da obra ser fácil se pegar pensando “já não está bom o bastante?”. Claro que não existe uma medida certa e sempre pode ser alegado que esta é a realidade local em sua dura crueza, mas quando a sequência final reverbera as consequências do longa até então em um ato de vingança calculado, a imagem do garoto despontar como uma casca seca de ódio é difícil de digerir. O final, entretanto, é menos absoluto em sua crueldade e permite ao espectador o absoluto desamparo das perguntas.

Foto: Diamond Films


Ótimo

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