CRÍTICA | Carrie, a Estranha

Direção: Brian De Palma
Roteiro: Lawrence D. Cohen
Elenco: Sissy Spacek, John Travolta, Nancy Allen, Piper Laurie, entre outros
Origem: EUA
Ano: 1976

Atenção! Essa crítica contém spoilers.

Apesar do contexto sobrenatural e dos poderes psíquicos terem sido os elementos que com mais vigor se firmaram no imaginário coletivo sobre Carrie, a Estranha (Carrie), são as características humanas reveladas a sangue frio que tornam a versão de Brian De Palma (Missão: Impossível) dessa história tão assustadora quanto sensível.

O recurso do medo é muito utilizado nos filmes ao nos confrontar com o desconhecido, o bizarro, o monstruoso. Contudo, transportados para uma realidade mais crua, o medo se exibe nas relações interpessoais muito através da raiva e da violência. Oprimir o diferente e restringir seus movimentos impondo-lhe um regime de vigilância e submissão é uma lógica vigente na nossa sociedade e espalhada por toda a vida de Carrie (Sissy Spacek).

Introvertida e alienada, ela é alvo fácil para suas colegas femininas. E logo ao início do filme vemos Carrie ter uma reação extremamente exagerada ao menstruar pela primeira vez no vestiário. Desesperada ao se achar em perigo, ela é imediatamente ridicularizada pelas outras estudantes. A resposta da protagonista ser tão absurda provoca certa graça, logo contraposta com a desproporcional provocação da qual é vítima. É desde esse primeiro momento que De Palma amplia o panorama do que está sendo observado para, apesar de toda a desgraça que acomete Carrie, não se perder a noção de que se trata de indivíduos em todas as partes do processo, por pior que sejam.

O que mais poderia se aproximar de um antagonista na história da Carrie é a maior defensora de suas limitações, sua mãe Margaret (Piper Laurie), uma fanática religiosa em um estado físico e emocional lamentável após ter sido abandonada pelo marido. É a figura mais assustadora da primeira parte do longa por encarnar o máximo do preconceito, crente de que a danação é uma condição intrínseca à mulher. Nesta interpretação distorcida dos eventos de sua vida, ela se culpa por ter se envolvido sexualmente com um homem e separa a filha de qualquer diálogo sobre sexualidade – daí a ignorância inicial de Carrie quando sangra -, demonizando qualquer possibilidade de prazer como perversão.

Red Bank Films

É fundamental que o filme, baseado na obra de Stephen King (Doutor Sono), se inicie com a menstruação de Carrie. O estranhamento que ela sente percorrer por este corpo em crescimento (capaz de produzir e evocar desejos à sua imaginação) se mistura com o fascínio do poder místico que ela vai descobrindo possuir. A obra nunca faz mistério sobre essa paranormalidade, enquanto Carrie vai aprendendo sobre, estudando e buscando entendimento de si, que lhe é negado na vida doméstica. Não é nem seu corpo, nem seus poderes, o monstro aqui, apesar de serem o que causa o grande terror no desfecho.

Existe um diálogo muito plural sobre sexualidade por todo o filme enquanto modelos de execução destes prazeres também atentam para a maturidade dos indivíduos envolvidos. Um dos primeiros contrastes é entre Chris (Nancy Allen) e Sue (Amy Irving). Enquanto Chris usa do sexo como um mecanismo egoísta, usando-o como moeda de troca com Billy Nolan (John Travolta) para colaborar em uma humilhação pública contra Carrie, Sue decide usar dessa sexualidade num pensamento altruísta. O método que ela escolhe não soa o mais adequado - e é chamada a atenção para isso pela professora Collins (Betty Buckley) -, mas ainda assim ela abdica de ir ao baile e convence seu namorado Tommy Ross (William Katt) a convidar Carrie no lugar.

Todos olham com desconfiança para esse convite, principalmente Carrie, já desgastada de ataques no colégio, mas logo quando Tommy vem busca-la, a história se transforma e é possível admirar um momento mágico no baile onde todos podem finalmente conhecer a jovem. Ela interage com as pessoas, conversa, se diverte, dança com Tommy, que também está passando a se fascinar com a personalidade gentil da menina. Toda a cena é repleta de uma magia distorcida, com a câmera girando ao redor da dança, do beijo, das luzes encantadoras, sem nunca ignorar a ironia dramática de já estarmos conscientes da artimanha de Chris.

É tudo oferecido para Carrie, apenas para ser tirado dela em um ato egoísta quando é posta como rainha do baile apenas para ser banhada em sangue de porco. A cena do massacre, onde seus poderes alcançam proporções mórbidas, é um uso incrível de split screen, que mesmo com a passagem de tempo não envelheceu mal. Seus olhos se direcionam em um lado para o efeito de seu poder ser exercido no outro lado da tela. Por mais brutal, a dor da cena é perceber que Carrie passou a visualizar todos rindo dela, mesmo que não condissesse com a realidade.

Red Bank Films

Quando chega em casa, o arco se conclui com sua mãe tentando mata-la para expurga-la deste terrível mal que se apoderou dela, sem jamais se tornar consciente de sua responsabilidade nesta transformação de Carrie. As palavras de Margareth sempre condenam a sexualidade, ao mesmo tempo em que suas rezas para uma pequena estatueta de Cristo com olhos malignos são alguns dos momentos mais sexuais da trama, com a mulher se desesperando em um gozo delirante. Ao final a casa é destruída por Carrie enquanto ela morria junto no processo.

Os eventos terríveis da noite do baile se tornam um trauma para Sue, sobrevivente por sorte. Mas apesar de ter visto tantos amigos e namorado morrerem tragicamente, a personagem parece entender com mais amplitude as circunstâncias cruéis às quais Carrie foi submetida. Sem olhar para a menina com culpa, Sue vai em um pesadelo entregar flores para seu túmulo vandalizado pelos vizinhos, condenando-a por tudo que aconteceu.

Carrie, A Estranha é uma narrativa potente em sua síntese dos problemas causados por repressão e medo, onde a condenação imanente de Carrie por sua própria existência, por seu próprio corpo, perseguiu-a por meio da religião, mas também por meio de barreiras sociais. O que destaca a interpretação de Brian De Palma sobre esta história é o equilíbrio perturbador entre empatia e violência no mundo da protagonista até que, encurralada, manifesta sua raiva e ainda é tomada pelo julgamento popular como uma vilã de sua própria vida.

Excelente

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