CRÍTICA | O Corcunda de Notre Dame

Direção: Gary Trousdale e Kirk Wise
Roteiro: Tab Murphy
Elenco: Tom Hulce, Demi moore, Jason Alexander, entre outros
Origem: EUA / França
Ano: 1996

O Disney+ chegou ao Brasil e atire a primeira pedra quem já não correu pra fazer a sua listinha de animações e filmes favoritos para ver e rever. E nessa onda de assistir novamente obras que marcaram nossas infâncias, a gente percebe como muitas delas, que eram apenas uma história infantil pra nós, ganham todo um novo contexto na vida adulta, nos tocando de forma diferente.

É o caso de O Corcunda de Notre Dame (The Hunchback of Notre Dame), um filme que sempre me emocionou quando pequena, me arrancando boas lágrimas, mas que agora me atingiu de forma completamente bem distinta.

A animação conta história de Quasimodo (Tom Hulce), um doce e inocente corcunda que habita a catedral de Notre Dame na Paris do século XV. Criado pelo impiedoso juiz eclesiástico Frollo (Tony Jay) e escondido por sua condição especial, sendo tratado como monstro durante cerca 20 anos, Quasimodo cresce rodeado por uma solidão que só é quebrada por suas fiéis amigas gárgulas. Tudo muda quando ele decide sair de seu refúgio para participar do Festival dos Tolos e conhece a encantadora cigana Esmeralda (Demi Moore), por quem se apaixona. A partir daí ele terá a missão de salvá-la da maldade e ira de Frollo.

Muito se fala sobre as clássicas animações das princesas Disney e a sensação que tenho é que algumas obras do estúdio acabam não ganhando a atenção que merecem. Posso estar enganada, mas é assim que me sinto quando falo de O Corcunda de Notre Dame, uma produção do fim dos anos 1990 que aborda tantos temas relevantes, mas que não possui o devido destaque entre as favoritas de muita gente.

Walt Disney Pictures

A história se passa no auge do período medieval, onde religiões consideradas pagãs e atividades que estivessem fora das práticas intituladas “cristãs” eram tratadas como bruxaria, condenando centenas, milhares, de pessoas a destinos horríveis, trazendo luz à importância e o respeito à diversidade religiosa.

Esmeralda é cigana e vê diariamente o seu povo ser perseguido, maltratado, humilhado e condenado a viver às margens da sociedade por suas crenças. Tratados como ladrões, bruxos e indignos, eles se escondem sob a cidade, em meio às catacumbas, além de viverem constantemente diante do risco de prisão, açoitamento e morte. Tudo isso em razão do fanatismo religioso, representado e personificado em Frollo, afinal, quando não existe Estado, a religião é a lei.

E falando em Esmeralda, penso que temos aqui umas das personagens femininas mais emblemáticas e marcantes da Disney, ao lado de Mulan, Mégara, Merida e Moana. Uma das poucas, se não a única personagem com um viés verdadeiramente político, revolucionário e que pode ser facilmente considerada uma ativista, inclusive arriscando a própria vida pelo bem-estar de seu povo. 

A coragem da personagem é inspiradora. Uma das cenas mais marcantes da obra é quando ela, abrigada na catedral de Notre Drame, canta à Virgem Maria, pedindo por proteção e uma vida digna ao seu povo e aos mais pobres. Inclusive, vale uma curiosidade sobre essa cena. Enquanto na versão em português as pessoas ali presentes pedem por diferentes coisas como luz e amor, na versão original e nos demais países, todos pedem algo para si em troca de sua devoção à Deus, como riqueza, prestígio, poder. Sua fé tem um preço. Enquanto isso, Esmeralda, considerada indigna, bruxa e má, é a única a pedir algo pelos outros, para quem realmente precisa. “Deus me valeu”, é o que ela diz, além de lembrar que Maria e Jesus já estiveram na mesma posição, como pobres e perseguidos.

Walt Disney Pictures

Para além da questão religiosa, O Corcunda de Notre Dame também aborda a inclusão de pessoas e o respeito à diversidade. Quasimodo é trancafiado em uma catedral e tratado como monstro durante toda a vida, apenas por ser diferente. Seu coração é puro e amável, e mesmo assim o personagem vive às sombras, apenas por não ser igual aos demais. Quando resolve sair de seu esconderijo, o mundo é cruel e o trata como aberração. É preciso que alguém como Esmeralda veja além de sua aparência para enfim valorizar o que há em seu interior.

A produção prova que não apenas precisamos aprender a lidar com as diferenças, como todos os espaços precisam estar abertos para essas pessoas. Elas precisam de acolhimento e serem tratadas como iguais. Como isso poderia acontecer com elas escondidas, relegadas a espaços diferenciados? Como já disse, a trama se passa no auge da era medieval, onde pessoas diferentes fisicamente, deficientes ou com transtornos psiquiátricos eram mantidas escondidas, aprisionadas, tratadas como monstruosidades e aberrações. Infelizmente não podemos dizer que algo assim não acontece mais hoje, já que temos em 2020 propostas de escolas exclusivas para pessoas com necessidades especiais, impossibilitando que elas interajam com outro indivíduos e que esses indivíduos aprendam a lidar com a diversidade. Vale sempre lembrar: capacitismo é algo a ser combatido e a separação não é a saída.

Também é importante mencionar que a animação é baseada na obra literária homônima, escrita por Victor Hugo, autor responsável por sucessos como Os Miseráveis. Claro que se tratando da Disney, podemos contar com o tradicional "final feliz", algo que não acontece no original. E, pra ser sincera, prefiro assim. Afinal, essa é uma trama que, apesar de ser destinada ao público infantil, carrega uma boa dose de pesar.

O Corcunda de Notre Dame é um história sobre preconceito religioso, fanatismo, elitismo, sobre lutar por direitos, pela inclusão e pela batalha por uma existência igualitária para todos. Se você ainda não assistiu a obra, tire um tempinho e o faça. Se já viu, reveja, vale à pena. Para mim foi a vez de entender que no mundo existem vilões muito piores do que bruxas que envenenam maçãs. Afinal, e infelizmente, Frollos são mais reais do que gostaríamos.

Ótimo


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