CRÍTICA | Má Educação

Direção: Pedro Almodóvar
Roteiro: Pedro Almodóvar
Elenco: Gael García Bernal, Javier Cámara, Fele Martínez, entre outros
Origem: Espanha
Ano: 2004

Abordar questões de sexualidade não é uma tarefa fácil, e certamente não são todos os artistas aptos a tratar de vertentes complexas relacionadas ao assunto de forma totalmente realista. No caso de Pedro Almodóvar (Fale Com Ela) a tarefa em si não pode ser considerada um desafio, já que o diretor espanhol é mestre em transformar angústias e histórias sobre a humanidade para a tela.

Má Educação (La Mala Educación) não foi a primeira vez em que o diretor abordou questões de gêneros na tela (o fato de trabalhar majoritariamente com mulheres, aliás, já é um forte indício disso). Um bom exemplo do trabalho que ele fez anteriormente é Tudo Sobre Minha Mãe (1999), em que uma mulher perde o filho e, na busca pelo pai, descobrimos que ele é uma travesti.

Se naquele filme Almodóvar fala sobre o assunto de forma um pouco mais libertária, o tom de Má Educação é ditado pela repressão e por momentos um tanto violentos - não com relação a exposições gráficas, mas ao abordar temas sensíveis de forma tão densa e bem elaborada. Não à toa o longa é repleto de reviravoltas, que fazem com que o drama vá ganhando novas camadas, algumas deveras surrealistas, outras flertando até mesmo com uma narrativa investigativa.

Na trama, o cineasta Enrique Goded (Fele Martínez) recebe a visita de um amigo de infância, Ignácio Rodriguez (Gael García Bernal), com quem cresceu dentro de um colégio interno religioso. Ignácio diz que escreveu um conto pensando nas experiências que os dois tiveram quando crianças e quer transformar a história em um filme, o que faz com que Enrique embarque em sentimentos de nostalgia e reflexão a respeito de sua própria sexualidade.

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O roteiro usa de contrastes e de metalinguagens para abordar esse sentimento ardente, confuso, solitário e visceral do que é estar preso no armário e ser impedido pela sociedade de sair dele. O simbolismo principal em si é o contraponto desse amor proibido dentro de um ambiente historicamente hostil com pessoas LGBTQIA+ que é a igreja católica. Essa também não é a primeira vez que o diretor expressa seus desafetos com a religião, já que desceu a lenha no catolicismo em Maus Hábitos (1983).

Assim como em grande parte de sua filmografia, Almodóvar faz de sua obra um retrato autobiográfico sobre ele mesmo. Isso porque, assim como os protagonistas, também cresceu no ambiente da igreja católica e passou por diversas opressões e violências experimentadas pelos garotos. O principal trauma que repassa para os personagens é o abuso sexual.

Além do ambiente de caráter disciplinar e punitivo, todos os medos dos personagens são concentrados na figura autoritária do Padre Manolo (Daniel Giménez Cacho), um pedófilo que faz de Ignácio sua principal vítima e pune os garotos ao descobrir que ambos desenvolveram sentimentos afetivos um pelo outro. Manolo representa a hipocrisia da Igreja Católica, já que a instituição é conhecida por acobertar diversos escândalos de padres pedófilos ao redor do mundo.

Sem a possibilidade de se vingar em vida, Ignácio escreve o roteiro como maneira de se vingar dos abusos sofridos pelo padre, o que se torna uma história secundária dentro do filme. É aqui que a metalinguagem começa a aparecer e fragmentar a trama em duas outras narrativas. Em uma delas conhecemos a travesti Angel (também interpretada por Bernal) que tem sede de vingança e a oportunidade de enfrentar Manolo, o mesmo padre que machucou Ignácio.

O uso do mesmo ator realizando dois personagens completamente diferentes faz com que a mente do espectador faça a associação mais óbvia, mas que depois passa por parte do intuito de Almodóvar de subverter as expectativas do público. É por isso que é recomendável assistir Má Educação sem buscar muito sobre o enredo, já que as reviravoltas são realmente bastante impressionantes e só enriquecem a experiência.

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As demais atuações cumprem com seus papéis, mas é inegável que esse é um filme que explora o que Gael García Bernal (Deserto) pode fazer diante das câmeras. E mesmo que seu ótimo trabalho em todos os papéis que realiza no longa seja inegável, o passar dos anos fez com que Angel ficasse datada, já que um ator interpretando uma pessoa trans, cuja prática foi anos depois nomeada como transfake, se tornou algo considerado ofensivo e equivalente ao blackface.

Mesmo com seu carisma que encanta rapidamente, é importante destacar que Angel é colocada em um contexto em que pessoas trans são sempre postas no cinema: marginalizadas, trabalhadoras sexuais e usuárias de drogas. Sim, é plausível que essa personagem caia para este rumo devido aos traumas sofridos pelos abusos, mas trata-se de uma narrativa que, nos dias de hoje, soa gasta e ultrapassada.

O rigor estético de Almodóvar, como sempre, é impecável. O cineasta adora explorar enquadramentos simétricos e bem alinhados, já o design de produção compõe belos espaços, ora luxuosos e esplendorosos (principalmente quando retrata a igreja), ora pitorescos e mega coloridos. É interessante notar o efeito rebote que esses espaços têm diante dos acontecimentos. Os cenários belos acabam incomodando já que o espectador passa a conhecer os segredos terríveis que eles escondem, intensificando o contraste da trama.

De modo geral, Má Educação apresenta um retrato íntimo da dor e da amargura que é ter a vida transpassada por traumas violentos causados pelos abusos e pela impossibilidade de deixar um passado dolorido para trás. Da mesma forma, consegue transpassar para o público geral como se parece o armário em que se está uma pessoa que não pode expressar sua sexualidade. O resultado é um auto retrato capaz de questionar as normas e de machucar os responsáveis por ela.

Ótimo



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