CRÍTICA | Madalena

Direção: Mediano Marcheti
Roteiro: Mediano Marcheti, Tiago Coelho e Thiago Gallego
Elenco: Joana Castro, Mariane Cáceres, Rafael de Bona, CHLOE MILAN, entre outros
Origem: Brasil
Ano: 2021

A vastidão verde dos plantios aliada a um firmamento de azul interminável dissimula através de sua tranquila paisagem todas as violências que assombram o universo sul-mato-grossense observado pelo diretor Madiano Marcheti (O Lugar Mais Frio do Rio). Num cenário à primeira vista tão insuspeito, toda sorte de brutalidades toma lugar em seu subterrâneo, seja a monocultura de soja agredindo silenciosa o solo até o ponto da infertilidade, seja o cadáver abandonado de Madalena (Chloe Milan). Uma crueldade que não parece perturbar a ambientação bucólica, afinal, este é o tratamento corriqueiro para corpos travestis no país que mais assassina pessoas transexuais no planeta.

Apesar de título tão grave e sinistro, o Brasil enquanto instituição não oferece mais que um olhar distante e pouco interessado numa realidade tão desumana quanto cotidiana. O primeiro longa do diretor congrega três histórias que se interseccionam pelo desaparecimento de Madalena. Sem haver qualquer investigação ou grande mistério, Madalena é uma dúvida para Luziane (Natália Mazarim) e um problema político-familiar para Cristiano (Rafael de Bona), mas só se torna um personagem, de fato, quando relembrada pela amiga Bianca (Pâmela Yulle) em suas histórias.

Os ilimitados horizontes são postos com um poder de encarceramento equivalente a muros de concreto. Soa como um mundo incontornável no tempo, uma prisão de repetições. Todos os recursos tecnológicos que aprimoram pesticidas e pragas, venenos que percorrem raízes e braços de uma masculinidade em espasmos, servem como carcereiros de um espaço maior do que fronteiras regionais podem traçar. O centro-oeste opera como uma metonímia de um país, mas também como núcleo da logística capital que elabora toda existência como mercadoria e dejeto industrial.

Polófilme

Nas duas primeiras histórias Madalena ganha silhuetas espectrais, hora fantasma, hora alienígena, obrigando seus arredores a terem um estranhamento com sua morte numa sociedade que naturalizou esse tipo de fatalidade. Principalmente para Cristiano, herdeiro das fazendas de soja e filho simbólico da associação inescapável entre política (representada por sua mãe, candidata) e agronegócio (representado pelo seu pai, fazendeiro), aquele corpo largado na soja é uma catástrofe para o seu futuro. Deliberadamente estes futuros são sempre interceptados, pois as histórias terminam sem encerrar arcos ou tecer explicações. É um universo agrário feito de fins abruptos. Mas é sobre o futuro que conversam as amigas no carro, um diálogo que por tanto tempo era apenas fantasia e capricho para pessoas LGBTQIA+.

A realidade em território nacional não é esperançosa, contudo a luta e a resistência pela dignidade e direito a vida de corpos trans é um fato, não um otimismo ingênuo. É uma experiência para além do sobreviver que é tida em coletivo, como a briga e carinhosa reconciliação muda no veículo deixa claro. Por isso o velório-paradisíaco que vivem ao final é tão espetacular: traz para a cena a protagonista em presença invisível para junto de suas iguais. A morte para Bianca e suas amigas não é estranha, mas elas se rejeitam o lamento lúgubre e transformam a memória afetiva em ação, em movimentos para o futuro, mesmo que precise de um empurrão na estrada para sustentar a ignição.

Ótimo


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