CRÍTICA | Val

Direção: Ting Poo e Leo Scott
Elenco: Val Kilmer, Jack Kilmer, Kevin Bacon, Marlon Brando, entre outros
Origem: EUA
Ano: 2021

Pela minha experiência pessoal, tenho para mim as faxinas de casa como atividades perigosas. Em um descuido no abrir dos armários, na curiosidade das mãos, se abre uma pequena maletinha de fechadura já rompida há muito onde se entulham lembranças de uma vida. Podem ser as coisas mais insignificantes, como o panfleto de um parque ecológico que visitei certa vez, ingressos de show e espetáculos, cadernetas da época de escola contabilizando meus atrasos e advertências. A menor sugestão da imagem e do toque bastam para afundar na correnteza do tempo. Val Kilmer (Fogo Contra Fogo), sendo um célebre ator em filmes norte-americanos de pura adrenalina como Top Gun: Ases Indomáveis (1986), adentra o perigo do passado - quase - sem dublês.

A narração de Val (2021), que tece um fio condutor por décadas e décadas de filmagens caseiras encapsulando a vida familiar e profissional do ator, é feita pelo filho do personagem-título, Jack Kilmer (Dois Caras Legais). Isso porque um câncer agressivo na sua garganta ainda deixa sequelas do tratamento bem sucedido, tornando o exercício da fala doloroso. Mesmo com esse empecilho, Val defende se sentir melhor do que aparenta. Este conflito entre sua imagem - projetada e consagrada na memória de milhões, mesmo com o ostracismo que recai sobre ele a partir do século 21 - e seus sentimentos é, entre tantas sequências de arquivo, o principal registro do documentário dirigido por Leo Scott e Ting Poo.

Sendo uma quantidade arrebatadoramente grande de material, a opção de traçar paralelos constantes entre cenas do passado e do presente é uma escolha muito acertada para tornar o filme menos uma linha cronológica que tente compactar uma vida humana e mais um questionamento atemporal sobre as narrativas que concebemos sobre nossas próprias cronologias. É uma separação sutil, mas relevante para o percurso do documentário: não está se tentando arrematar motivações claras para as escolhas de vida do ator ou associando causas e consequências que levem o espectador a uma catarse conclusiva. Não se conclui uma vida com um ato final ou uma frase de efeito, por mais tentador que isso pareça a qualquer cinebiografia.

A24

O longa é mais provocador sobre como o próprio Val racionaliza suas escolhas, seus dilemas, as tragédias que experimentou e o que poderia significar deixar um legado. São os autógrafos? As vivências coletivas de um Batman ou de um espetáculo alternativo interpretando Mark Twain? É o que fica para os outros ou o que você faz de si mesmo por meio do seu impacto no mundo? Somos por definição ou somos feitos em processo? A vida humana abre todas as brechas possíveis para a contradição e não há escapatória. Bravura e covardia. Gentileza e Mágoa. Não é possível separar uma série de atributos específicos e determinar as qualidades de um ser vivo com uma ficha de personagens bem organizada. Portanto, não é tão preocupante que o sentido se perca e a vida prossiga até uma nova mutação.

Val é um passeio calmo por uma vida repleta de holofote, mas sem o deslumbramento corriqueiro à esse contexto. Pelo contrário, de forma frustrante parece que a devoção à arte que Val encontra sempre poucas válvulas de escape, tendo sido efetivado por muito tempo como tão somente uma das milhares de máquinas da indústria hollywoodiana. E até filmes fúteis acabam lhe custando sacrifícios tão caros. Toda a glamorização do ofício de ator é deixada de lado, mas encarada por detrás dessa fantasia da imagem com uma sobriedade e reverência completas. O documentário acaba, assim, também sendo uma ode de Val - e, em certa extensão, seu filho - ao próprio ato de atuar.

Bom


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