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Postado por
Gabriel Galvão
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É uma sutileza de difícil equilíbrio oferecer um material com um discurso claro, apto a ser absorvido pelas pessoas - elas gostem ou não do conteúdo revelado - desarmado de artimanhas gramaticais próprias para confundir o interlocutor e torná-lo submisso a algo que não entende e nem possui os recursos para entender. Se por um caminho o proselitismo rebuscado tem funcionalidades plásticas no fim das contas inofensivas no cenário maior, por outro o didatismo esvazia qualquer força de produção de pensamento, impedindo que haja um diálogo e a construção lógica do sujeito acerca do que percebe. Sendo assim, a clareza com a qual Kleber Mendonça Filho (O Som ao Redor) novamente enriquece sua mensagem, dessa vez aliado na direção com Juliano Dornelles (O Ateliê da Rua do Brum), é uma vitória louvável.
Bacurau começa com uma longa tomada estelar, com a câmera aos poucos se reclinando para o Planeta Terra e se aconchegando no nordeste brasileiro. Uma filmagem observável em grandes produções norte-americanas, mas pouco usual no nosso acervo nacional, ainda mais com o CinemaScope exuberante de Pedro Sotero (Gabriel e a Montanha), que nunca nos permite um momento de alívio diante da magnitude silenciosa das cores do interior pernambucano.
Para melhor a introdução ainda é acompanhada de uma sonora música brega-cafona, modalidade brasileira por excelência. Mais a fundo alcançamos Bacurau, essa cidade pequena cercada por uma vegetação incalculável e aparentemente indisponível nos mapas de satélite por um descaso, como se emulassem a negligência humana. O recado está dado: esse filme é nosso e esse povo que mora em Bacurau só pode ser a gente.
Para melhor a introdução ainda é acompanhada de uma sonora música brega-cafona, modalidade brasileira por excelência. Mais a fundo alcançamos Bacurau, essa cidade pequena cercada por uma vegetação incalculável e aparentemente indisponível nos mapas de satélite por um descaso, como se emulassem a negligência humana. O recado está dado: esse filme é nosso e esse povo que mora em Bacurau só pode ser a gente.
Foto: Vitrine Filmes |
Quando Teresa (Barbara Colen) volta à sua cidade no contexto da morte de sua avó, uma figura beatificada pelo amor da comunidade, lhe é colocado algo na boca que mais tarde descobrimos se tratar de um psicotrópico. Sem nos comunicar mais que isso, a revelação é de que para alcançar de fato aquele local é preciso acessar outros lugares de sua existência, de seu olhar. Uma perspectiva condescendente ou indulgente em cima desse povo, como se fossem reféns de uma escassez que lhes acomete por nada menos que a graça divina, é uma resposta inadequada e despreparada para o Brasil de hoje. O centro da história vem de Bacurau para fora e não ao contrário. Apesar de sua formatação sugerir alguns protagonismos, a liderança da narrativa fica sempre por parte dessas ruas, dessas casas.
Em uma dosagem refinadíssima do que de melhor Kleber soube apreender de seus primeiros filmes, que abraçam a fantasia do horror infantil e de sua averiguação do laudo médico de doenças corroendo os centros urbanos e a decadente classe média, Bacurau é uma sopa de gêneros. Em dado momento como thriller, em dado momento como gracejos de comédia de desconforto, em seguida sendo um western cru. Essa linguagem é fundamental para apresentar o constante estado de vigilância que acomete uma cidade açoitada pelo poder público interesseiro ou estadunidenses sanguinários. Pouca mensagem é verbalmente trocada para que se entenda o estado de perigo aos poucos envolvendo a comunidade, pois em verdade esta condição nunca os abandonou de fato. A resistência daquela cidade já se revela em sua constante existência, dia após o outro.
O elenco é de uma pluralidade tão viva que só é possível tornar aquela união toda de pessoas uma realidade material. Mesmo Sônia Braga (Aquarius), aqui apresentada como Domingas, médica local, não é o centro das atenções ou rouba holofotes para si, pois se trata de mais uma peça funcional de um sistema orgânico administrado para sobreviver a todo custo. Ainda assim, é dela uma das cenas mais magistrais do longa, onde oferece uma boa mesa de almoço ao forasteiro vivido por Udo Kier (Confronto no Pavilhão 99), Michael, líder de uma trupe armada que veio àquela cidade abandonada pelos mapas para brincar com seu estoque de armas de fogo sem preocupações. É uma alegoria firme, e própria de fábula, sobre a receptividade nordestina e a cobiça estrangeira.
Esse estrangeiro, seja vindo de dentro do Brasil ou de fora, é o real inimigo com o qual se confronta. Quando surgem dois motociclistas vestidos de cores psicodélicas, toda a cidade está de guarda fechada, pois ainda que se apresentem sendo do Rio de Janeiro, isso não os torna menos alienígenas. Esses mesmos brasileiros que se enxergam como de primeira ordem se despem de um verniz elitista para falarem de cabeça baixa e contraídos na presença de estadunidenses. A historiografia das Américas Latinas já deixou seu alerta sobre essa repetitiva posição de subalterno na qual se prostram as elites locais aos estrangeiros, saboreando doses de um sonho de primeiro mundo que jamais será deles de verdade.
Possivelmente o grande momento a ser questionado no filme, a sequência que esclarece esse conflito racial e sociocultural, é profundamente didático e em dado momento até bobo, tornando os vilões configurações clichês e surrais de um obstáculo que é, na verdade, bem real em nossa contemporaneidade. Mas é também em outra cena, quando entre os atiradores um deles chama Michael de nazista. O personagem então relaciona o ocorrido com sua origem alemã e alerta o colega:
Portanto, sou levado a entender esta fala como um metacomentário. Os estrangeiros aqui realmente não importam, suas figuras e sede de sangue são instrumentos que na verdade nos voltam o olhar para Bacurau novamente.
"Se quer ofender alguém, não use algo tão clichê".
Portanto, sou levado a entender esta fala como um metacomentário. Os estrangeiros aqui realmente não importam, suas figuras e sede de sangue são instrumentos que na verdade nos voltam o olhar para Bacurau novamente.
Se para estes estadunidenses a violência é uma diversão, um regozijo que efetivam com precisão e lógica, para os moradores de Bacurau a violência surge grotesca, insana e furiosa sem nenhum vínculo de prazer. Tanto é que, apesar da construção de arco nos levar a desejar a morte devolvida aos estrangeiros com os requintes de crueldade que cabe, a direção de Kleber e Juliano sempre impede que isto seja uma recompensa ao espectador, tornando o desfecho possivelmente anti-climático para alguns.
Mesmo enterrando o oponente, a luta de Bacurau não cessa, o conforto e a comemoração não chegam em momento algum. Essa luta brutal pode ter obtido uma pausa ao final da trama, mas prossegue enquanto a cidade permanece. E como ela, tantas outras. Como essa gente, tanta outra gente é vítima da negligência dos governos - ou muitas vezes de criminosos que gozam da colaboração do poder público. Isto está acontecendo aqui, neste momento, agora. O Brasil é um país que mata por diversão. Mata pobre, mata político, mata defensor de causas, mata LGBTs, mata mulheres, matam uns aos outros. É preciso entender e observar a violência neste país sem caprichos ou fetiches. E urge entender quais são os agentes desse genocídio.
Quem nasce em Bacurau é gente.
Ótimo |
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