CRÍTICA | Democracia em Vertigem

Direção: Petra Costa
Roteiro: Petra Costa
Elenco: Dilma Rousseff, Luiz Inácio Lula da Silva, Sergio Moro, Michael Temer, Eduardo Cunha, entre outros
Origem: Brasil
Ano: 2019


O novo documentário de Petra Costa (Elena) distribuído pela Netflix é acompanhado por uma tangível necessidade de se justificar perante sectos virtuais que rejeitam a narrativa amarrada por ele. O filme já se inicia desconcertante por precisar lembrar que nenhum documentário ou obra que se disponha a apresentar eventos históricos e contar sobre eles é capaz de, assim, revelar a verdade última.

As farpas trocadas pelas redes sociais envolvendo mesmo representantes de cargos públicos e partidos políticos, em uma época na qual irreconciliáveis diferenças de visão de mundo entram em choque sem disfarce, escancaram o poder imediato do cinema em trazer ao palco o objeto principal do assunto entre todos da platéia. Evoca seu nome, convida-o e emite aplausos ou vaias. A questão anterior à recepção ou à apresentação é a simples presença.

Democracia em Vertigem (2019) recapitula os caóticos eventos recentes na dinâmica social e política do Brasil, na missão de organizar mais linearmente a profusão de circunstâncias que nos levaram até o atual cenário. Missão essa cujo chamado parece ter alcançado muitos cineastas, visto que na mesma linha temos O Processo (2018), de Maria Ramos, acompanhando o desenrolar do impeachment que destituiu a presidenta Dilma Rouseff em 2016; e também Excelentíssimos (2018), de Douglas Duarte, que tem menos receio em se misturar à pilhéria insana da câmara dos deputados em Brasília. Dentro deste Impeachment Cinematic Universe, o longa de Petra Costa se destaca entre muitos motivos pela visão mais lírica, pessoalizada e emocional com a qual contempla passivo a demolição estrutural e moral de um partido que perdurou 13 anos na cadeira presidencial.

Foto: Orlando Brito/Netflix

Como o título já propõe, a história da queda do Partido dos Trabalhadores e uma análise suposta do que levou a isso, entre traições e alianças com megacorporações e personagens duvidosos, é também a história da queda do formato democrático do Brasil, o que Petra nomeia em dado momento observando um gabinete fantasmagórico como "o fim de um sonho breve". De fato, o Brasil é perpassado em toda a sua história por tantas convulsões políticas, um embate alheio ao que se passa nas grandes extensões de terra e todo o país continental, que a própria ideia de um partido ter estado no poder por tanto tempo soa como um intervalo no destino sórdido de uma nação construída na base de imagens frágeis e genocídio.

Para a parte do público que não assimila essa versão dos acontecimentos, o filme apenas soa como (mais) uma politicagem insossa de propaganda. Todavia, não é inadequado que nos debrucemos sobre os fatos que a edição nos trás e a história que traça. Não é possível separar com precisão química a linguagem de seu conteúdo, mas arriscando uma análise em dois âmbitos é possível refletir sobre a qualidade com a qual Petra urde suas imagens e sua prosa com respingos graciosos de literatura, algo já identificável como traço autoral dela. Porém, também divide com outras peças de sua filmografia o mesmo obstáculo de um lirismo plástico e inócuo, incapaz de se desafiar a pensamentos mais contraditórios.

Isto porque Democracia em Vertigem está muito pouco interessado nas contradições e nos dilemas de sua história. Exaltando expressivamente a época democrática vivida no Brasil no governo petista, a diretora convenientemente omite diálogos e ligações fundamentais (como fragmentos da ligação de Romero Jucá, apesar de deixar em replay em outro momento), pouco conversa com a população, novamente apartada dos trâmites de seu destino. Quando muito, Petra tem a enorme sorte de capturar imagens interessantíssimas como o Palácio da Alvorada sendo desmobiliado e fazer perguntas às camareiras, estas ironicamente muito mais atentas ao fato de que o jogo político pouco lhes oferece. A troca de cargos pouco apavora a vida extenuante do trabalhador brasileiro pois este é muito menos familiarizado com a suposta democracia que este filme enterra melodioso. A diretora é capaz de observar comícios do ex-presidente Lula e até entrevistar a ex-presidenta Dilma ao lado da mãe, ambas presas em diferentes momentos na mesma penitenciária, sofrendo cada uma abusos diferentes de torturadores. 

Foto: Francisco Van Steen Proner Ramos / Netflix

Mas essas imagens não estão ali apenas por sorte ou bondade; Petra tenta dar pinceladas que misturam a história da sua família com a do país, apesar de ser herdeira da empreiteira Andrade Gutierrez, cuja participação em candidaturas de vários presidentes não se fez a troco de nada. Tratar disso sem dispor na mesa todas as cartas e apresentar os conflitos inerentes a sua condição diante dos acontecimentos enfraquece enormemente a capacidade reflexiva de Democracia em Vertigem. Há um constante lamento por um sistema político mais nobre que nunca chegou nos subúrbios, nas favelas, nos grupos marginalizados. Uma sofreguidão vinda do ponto de vista de alguém que perde muito menos que o trabalhador com a ascensão de um sistema neoliberal inescrupuloso onde tudo é vendável e nada é garantido. 

Claramente não é função da diretora fazer "mea culpa" de parte de sua família (não os pais, estes sempre saudosamente lembrados como militantes de esquerda pela memória afetiva de Petra), apesar de tentar muito timidamente. Mas causa um prejuízo irreversível à qualidade de sua poesia quando esta é tão bonita que não tem coragem de se enfeiar nem um tanto com crueldades que acompanharam também os anos de governo petista. A presença constante de áudios em inglês, da repercussão internacional como parte da imagem, é capaz de esclarecer o porquê desse cuidado maniqueísta: o interlocutor de Democracia em Vertigem é o exterior, é o estrangeiro. Tem um desespero constante de urgência nas imagens como se fosse preciso garantir o mais cedo possível que a verdade do caos brasileiro tenha garantido seu registro no cânone do mundo por meio da exportação de uma narrativa trágica sobre si. É compreensível, visto que de fato manifestações artísticas e operações culturais são cada vez mais cerceadas por um projeto de poder estupidificante em vigor, dispondo de instrumentos para censurar e sabotar o que não convir. Mas também é frustrante para muitos que nunca tiveram o gosto dessa tão chorada democracia assistir já seu enterro por mãos que pouco tem a perder na divisão de bens da herança da finada.

Bom

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