CRÍTICA | A Viagem de Chihiro

Direção: Hayao Miyazaki
Roteiro: Hayao Miyazaki
Elenco: Rumi Hiiragi, Miyu Irino, Mari Natsuki, entre outros
Origem: Japão
Ano: 2001


Hayao Miyazaki (Princesa Mononoke) é provavelmente o maior representante da animação japonesa, isso se não for o maior contator de histórias em todo mundo. Lançado em 2001, A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no kamikakushi) se tornou um marco não apenas das produções do Studio Ghibli, mas do cinema como um todo. Recordista de bilheteria no Japão, superando até blockbusters hollywoodianos como Titanic (1996), foi um perfeito caso de sucesso entre público e crítica. Não a toa foi o primeiro longa de animação japonesa a ganhar um Oscar. 

A trama conta a história de Chihiro (Rumi Hiiragi), uma garota de 10 anos que está, contrariadamente, se mudando para outra cidade. Na estrada, ela e os pais descobrem uma espécie de parque temático abandonado. Curiosos, decidem conhecer o lugar e Chihiro, mesmo assustada, os acompanha. No local, os pais encontram diversas comidas deliciosas e resolvem experimentá-las. A garota se nega a fazer o mesmo e passa a explorar o espaço. Porém, quando volta, se depara com seus pais transformados em porcos. Logo, misteriosos seres aparecem e Chihiro se vê em outro mundo, onde bruxas, espíritos, deuses e outras criaturas existem e no qual ela precisa descobrir como pode salvar seus pais.

Além da qualidade técnica invejável, a animação também é complexa e sensível, unindo realidade e fantasia, o divino e o humano, o antigo e o moderno, em uma história cheia de simbologia que discute, por meio da dualidade, a questão da identidade. É uma jornada profunda sobre amadurecimento e auto-reflexão. Chihiro é forçada a enfrentar uma realidade dura, tendo que ser aceita em um mundo que não conhece, ser aprovada pelos seres que dominam o ambiente, saber como enfrentar os sentimentos de distanciamento dos pais, assim como, seu primeiro amor. Mas as mudanças na personalidade e no jeito de encarar as situações se transformam de maneira sutil e em escala.

Foto: Studio Ghibli

A discussão sobre a dualidade da identidade vai além do período de transição que a protagonista vivencia. Quando a bruxa Yubaba (Mari Natsuki) aceita que a garota trabalhe na casa de banho, ela declara que o nome de Chihiro a pertence e diz que a mesma passará a se chamar Sen (“mil”, em japonês), uma palavra que denomina um valor, e simboliza outra questão bastante forte na obra: a perda de identidade em decorrência da ganância e do consumo exagerado.

Essa ideia de rito de passagem é o cerne dos filmes coming of age, que retratam histórias de amadurecimento. A Viagem de Chihiro, à sua maneira, se encaixa no gênero e busca aproximar o público da forma como Chihiro experiencia este momento por meio da construção da personagem. Ao criar uma protagonista comum, pela aparência e trejeitos, Miyazaki tem como objetivo fazer qualquer garota de 10 anos se identificar e se reconhecer em Chihiro. Isso, no entanto, não a torna superficial ou desinteressante.

Além de Chihiro, outro personagem que também traz essa ideia de perda da identidade é Haku (Miyu Irino), o garoto que trabalha para Yubaba. O primeiro amigo de Chihiro no novo mundo a alerta desde o início que ela nunca pode esquecer seu nome de verdade, como aconteceu com ele próprio. Esquecer o nome é perder sua identidade, seu passado. Fica apenas a saudade de algo que deixou de ter, a nostalgia, que aparece como um dos pontos chaves da produção.

A obra deixa deixa claro o quanto as memórias que criamos são importantes no nosso processo de amadurecimento. O que também nos remete ao que é a cultura japonesa em si, infiltrada historicamente pelo ocidente, e que ainda enfrenta dificuldades em se manter firme e inesquecível até em seu próprio país. Como Haku não lembra quem é, e precisa de ajuda para se libertar de Yubaba, vê-se em uma armadilha. A única maneira de sobreviver é entregar-se a mesma, assim como a cultura japonesa. Então, o personagem precisa voltar ao mundo para reconstruir sua personalidade e renascer perante a sociedade. Como o Japão perante sua cultura e raízes.

No entanto, Miyazaki, mesmo com esse sentimento de nostalgia em relação ao passado, não coloca a cultura nacional como algo puro, livre do que há de ruim. Pelo contrário, nas cenas da casa de banho em específico, onde os deuses vão para descansar, também se mostra que existe preconceito, soberba e egoísmo.

Foto: Studio Ghibli

Outra alegoria evidente na animação é referente a sociedade de consumo capitalista. Os pais que comem e viram porcos, ou a própria cidade em que Chihiro fica presa, onde cada um tem uma função social, como a Yubaba, que comanda as tarefas e explora os trabalhadores. Estes, que por sua vez, perdem a identidade na rotina de trabalhos exaustivos e se submetem a qualquer coisa em troca de ouro. Isso sem contar as Yunas, servas que trabalham limpando e lavando os deuses na casa de banho, remetendo às casas de prostituição.

Além disso, elementos do capitalismo ainda podem ser vistos no quarto do Bebê (Ryûnosuke Kamiki), que chora quando não ganha o que quer; ou mesmo durante o banho do suposto espírito fedorento, que está repleto de entulhos como bicicleta e eletrodomésticos. 

Agora, é necessário destacar o personagem mais icônico e representativo do filme, o Sem Face ou Sem Rosto. A criatura, que chega de surpresa na casa de banho, é desprovida de qualquer identidade. Não tem voz, membros do corpo, expressão, personalidade e sequer um nome, já que Sem Rosto é o apelido dado pelos trabalhadores da casa de banho a ele justamente por conta de sua face inexistente. Ele apenas vaga por aí, despercebido ou ignorado, até ser notado por Chihiro, que é gentil com ele.

É aí que conhecemos sua principal característica: ele se comporta de acordo com a maneira como é tratado. Sua função é absorver o que lhe dão. É exatamente isso que uma criança faz, uma alma inocente que absorve, aprende e desenvolve o que lhe é dado. Mas quando os trabalhadores da casa de banho se aproximam, apenas interessados no ouro que ele produz, Sem Rosto também se torna ganancioso, arrogante e viciado em consumir cada vez mais. Nesse consumo desenfreado e no comportamento que reflete o outro, fica escancarada a falta de identidade dele, no sentido mais absoluto. Somente ao vomitar o que consumiu e ir para longe da casa de banho, distante desses sentimentos ruins, é que ele se purifica.

Se A Viagem de Chihiro encanta por sua complexidade e pela riqueza de detalhes e símbolos, é importante notar que Miyazaki também valoriza o silêncio, os momentos de contemplação e quietude de seus personagens. Característica típica dos filmes da Ghibli, e que dizem tanto quanto uma cena mais agitada. 

Foto: Studio Ghibli

Se tudo isso não bastasse, Chihiro ainda representa um elemento muito comum em muitos filmes do diretor: a protagonista feminina forte. Sempre de forma sutil e realista, somos apresentados a mulheres destemidas, curiosas, e completas por si só. Nas palavras do próprio diretor:

“Qualquer mulher é tão capaz de ser um herói como um homem.”

A Viagem de Chihiro é uma obra de possibilidades infinitas que se adequam a cada subjetividade. Um tesouro resistente ao tempo e que merece ser descoberto por todos aqueles abertos a novidades. Miyazaki, como nenhum outro, captura a nostalgia, as perdas e o amadurecimento que existem em um período de transição, seja em Chihiro ou no próprio Japão. Uma animação única. Extraordinária.

Ótimo

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