CRÍTICA | A Hora do Show

Direção: Spike Lee
Roteiro: Spike Lee
Elenco: Damon Wayans, Savion Glover, Tommy Davidson, Jada Pinkett Smitt, Michael Rapaport, entre outros
Origem: EUA
Ano: 2000


Estamos vivendo uma época de mudanças. Bom, não sei se mudança é de fato a palavra correta, mas talvez a sua busca. O movimento negro existe há tempo suficiente para que mudanças fossem mais perceptíveis e a sua história é o princípio daquilo que chamamos de resistência. Nas últimas semanas, porém, e com toda razão, a pauta está de novo sob os holofotes. E é fato: precisamos nos informar, estudar e buscar conteúdos produzidos por pessoas negras, que nos tirem do limbo do nosso conformismo e nos façam questionar o nosso papel dentro de uma cadeia de privilégios.

Quando esse é o assunto, um cineasta costuma saltar aos olhos daqueles que amam a sétima arte: Spike Lee (Jogada Decisiva). Com uma filmografia marcante, não é de hoje que o diretor vem botando o dedo na ferida e cobrando de quem merece ser cobrado a conta pelo racismo dentro da Academia. E no meio de tantas obras relevantes, A Hora do Show (Bamboozled) me chama a atenção.

O longa conta a história de Pierre Delacroix (Damon Wayans), um roteirista de programas e séries de TV que não aguenta mais o racismo diário do seu chefe e da equipe para qual trabalha, sendo constantemente silenciado e vendo suas ideias pararem no lixo. Como um dos poucos colaboradores negros do canal de televisão e cansado dessa realidade, ele decide criar a narrativa para um show altamente racista e estereotipado, com o objetivo de ser demitido ou finalmente fazer com que seus superiores entendam o seu papel como propagadores dessa mensagem de preconceito. O que Delacroix não imaginava era que o programa não apenas seria aprovado com louvor, como se tornaria um fenômeno televisivo.

Foto: New Line Cinema

É difícil descrever o quão significativo e necessário A Hora do Show é. Spike, que também assina o roteiro, não tem medo de ousar e escancarar assuntos que causam desconforto e chocam o público. Temas como o complexo do branco salvador e o estereótipo do negro agradecido são abordados com precisão. Em algumas situações é colocada uma "lente de aumento" de forma proposital, fazendo algumas cenas soarem exageradas e grotescas aos olhos do espectador, mas que não surpreenderiam tanto na vida real, como um homem branco afirmando saber mais da cultura preta do que o próprio, afirmando: "Sou casado com uma negra e tenho filhos mestiços”.

No começo pode parecer inimaginável que um show como o retratado no filme possa ser produzido, afinal, todos (todos mesmo) os estereótipos racistas mais traumáticos são utilizados como recursos por Delacroix para torná-lo o mais repugnante possível. O cenário é uma fazenda de melancia, temos Little Black Sambo, Jim Crow, Tia Jemina (Mammy), Pai Tomás e os próprios protagonistas que, apesar de serem interpretados por atores negros, fazem black face e são retratados como completos ignorantes. Como um programa assim poderia ir ao ar? Nos choca perceber que a resposta para essa pergunta é que muitos já foram exibidos. E não precisamos ir longe para buscar semelhança no Brasil, já que personagens como Mussum existiram e fizeram grande sucesso em sua época.

Spike utiliza da licença poética para extrapolar situações, mas a questão é que, apesar disso, elas ainda soam dolorosamente reais. A Hora do Show é incômodo do início ao fim, pois vemos o pior da nossa sociedade racista ali, exposto de uma única vez, como um soco. Todas as nossas feridas expostas e sangrando, enquanto alguns riem.

A peculiaridade das escolhas criativas do cineasta é interessante de ser analisada. Como já fez em obras como Infiltrado na Klan ou Destacamento Blood, Spike recorre a inserções documentais em frames aqui e ali para nos trazer para dentro de uma narrativa ficcional, sem perder o tom de realidade e de onde aquela discussão foi retirada. Ele sabe como sua raça é vendida pela mídia e faz questão de escancarar a realidade para aqueles que querem "se fazer de cegos" não terem desculpas.

Foto: New Line Cinema

No entanto, o que mais me marcou em A Hora do Show foi a personagem de Jada Pinkett Smith (Matrix Reloaded), Sloan Hopkins, devido ao arco narrativo estabelecido e a maneira como ele foi desenvolvido. Assim como todos os momentos em que Manray (Savion Glover) e Womack (Tommy Davidson) preparam a mistura necessária para o black face ideal. É simplesmente chocante. Não tenho palavras para descrever a dor ali empregada.

Sobre os caminhos tomados por Delacroix, Manray, Womack, bem como suas escolhas, não me cabe uma análise aprofundada, pois me sinto incapaz para tal. Apesar da empatia, não possuo vivência para encarar o cenário de decisões que cada um tomou para fazerem parte da narrativa que compõem aquele programa. Existe algo, porém, que posso destacar e que tenho certeza que Spike fez questão de deixar claro com seu desfecho. Quem paga a conta é sempre o negro, e estar em uma posição “confortável” nunca deixa isso de lado. Enquanto existir o racismo, nenhuma vida preta estará livre da opressão e dos riscos impostos pela sociedade.

E se você chegou até aqui, peço que assista A Hora do Show para elaborar sua própria análise. Certamente será um ótimo exercício e um baita aprendizado.

Ótimo

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