Lovecraft Country | 1ª Temporada



O ano de 2020 será lembrado pela pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2) que parou o mundo, mas também como o ano de protestos - "Black Lives Matter" (Vidas Negras Importam) - contra o racismo estrutural em todo o mundo, principalmente nos Estados Unidos, após o assassinato de George Floyd por violência policial. Dentro desse contexto sociopolítico, Lovecraft Country, série da HBO, se tornou a obra televisiva perfeita e essencial para discutir sobre a opressão histórica sofrida pelos negros e demais temais raciais, assim como a série Watchmen também fez.

A produção situa seu enredo nos Estados Unidos segregado da década de 1950. Atticus Freeman (Jonathan Majors) é um jovem negro, veterano da Guerra da Coréia, fã de H.P. Lovecraft e outros escritores de pulp fiction, que tem que lidar com o racismo quando volta à sua cidade natal, além de se ver jogado em uma aventura fantástica e aterrorizante, envolvendo sua ancestralidade e família.

“Meus irmãos e irmãs pretos, ninguém jamais saberá quem nós somos... até nós sabermos quem somos! Nunca seremos capazes de ir a qualquer lugar, se não soubermos onde estamos.”
Malcolm X

Adaptada do livro Território Lovecraft, de Matt Ruff, a série utiliza da mitologia de Lovecraft - um clássico autor de terror, mas comprovadamente racista - para dar base para a trama aterrorizante e fantástica de Atticus, assim como utiliza da segregação racial histórica para causar o terror real. Esse é o grande trunfo da obra, convergir em nuantes o terror fantástico e real, especialmente no que diz respeito a opressão imposta pela raça branca.

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Apesar de contar com a produção de nomes de peso como Jordan Peele (Corra!) e J.J. Abrams (Star Wars: O Despertar da Força), é a showrunner Misha Green (Sons of Anarchy) que merece todo destaque e reconhecimento. A autora escreve um texto ambicioso, que não se priva de tocar na ferida, ao mesmo tempo em que soa complexo nos simbolismos que discutem o racismo, isso sem nunca deixar o entretenimento e a diversão de lado, já que temos uma produção repleta de aventura, suspense e terror.

Lovecraft Country utiliza o livro de Ruff como base, mas não hesita em modificar diversas passagens, buscando maior profundidade de desenvolvimento de personagens e contexto histórico, como toda boa adaptação deve ser. Vale lembrar que Misha é uma autora negra, enquanto Ruff, por mais que faça um trabalho essencial no livro, é branco. A estratégia foi dividir os episódios em formatos e gêneros diferentes - quase como uma antologia - ainda que mantenham conexão com o arco principal que está sendo contado. Quem procura por um formato mais convencional pode acabar se decepcionando, mas se você resolve abraçar a proposta, a jornada é excelente.

Essa originalidade se faz presente nos 10 episódios:

  • 1x01 Sundown é um road movie que apresenta as ameaças da segregação racial e da magia/monstros cósmicos de Lovecraft;
  • 1x02 Whitey's on the Moon é uma ficção científica/fantasia que contextualiza a magia e fala sobre a dominação da mente;
  • 1x03 Holy Ghost é uma história clássica de fantasmas, que discute a força negra e ancestralidade;
  • 1x04 A History of Violence é ma divertida caça ao tesouro (no melhor molde Indiana Jones) para descobrir os segredos da origem da magia;
  • 1x05 Strange Case é um episódio sobre transformação, física (com mutação trash ao estilo de A Mosca) e psicológica, com uma troca de identidade em uma sociedade racista e preconceituosa;
  • 1x06 Meet Me in Daegu é focado na Guerra da Coreia, uma fábula coreana sobre liberdade e ser quem somos;
  • 1x07 I Am. utiliza de viagens no tempo e espaço para falar sobre afro-futurismo, descobrimento e autoconhecimento;
  • 1x08 Jig-a-Bobo é o episódio que mais brinca com o gênero de terror, referenciando obras como A Hora do Pesadelo (1984) e Nós (2019), e se aprofundando na violência que os negros sofrem diariamente, bem como o trauma e dor que carregam;
  • 1x09 Rewind 1921 é onde os personagens viajam no tempo (no melhor estilo De Volta Para o Futuro) até o Massacre de Tulsa em 1921 para discutir sobre os horrores ali cometidos e as marcas eternas que ficaram na população negra;
  • 1x10 Full Circle enfim une todos os conceitos anteriormente apresentados e discute sacrifício e imortalidade.
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Outra característica que a série explora muito bem é seu formato de literatura pulp, que exploraram situações mais absurdas e extrapoladas. Isso dá ao show uma característica ousada e divertida que é pouco usual na televisão hoje em dia. 

Visualmente, caminha quase para um lado mais trash (como a série Ash vs Evil Dead), mas também trabalha com ótimos efeitos visuais para representar toda a mística e horror envolvidos, com magia, monstros, fantasmas, entre outros.

Aticcus é um fã das histórias de Lovecraft, mas tanto seu pai, Montrose (Michael Kenneth Williams), como seu tio, George (Courtney B. Vance), o alertam que esse seu amor não deve cegá-lo da verdade por trás delas. Isso é muito bem explorado e subvertido na série.

"Ser negro neste país, e relativamente consciente, é ficar furioso quase o tempo todo.”
James Baldwin

Por vezes Lovecraft Country se mostra complexa e cheia de camadas. Por vezes a mensagem é simples e direta ao ponto. Diversas referências são colocadas ao longo dos episódios, seja recriando fatos marcantes que ocorreram naquela época, na utilização de discursos de célebres personalidades negras (como Baldwin) ou nas músicas que fazem paralelo com a discussão proposta. Toda a ambientação é exuberante e detalhada, recriando bem os costumes e comportamentos da década de 1950.

O elenco, por sua vez, recebe um presente. Praticamente todos os personagens são interessantes e bem desenvolvidos, fazendo com que todos brilhem em tela, especialmente quando também discutem temas como o resgate do poder feminino e masculinidade frágil/tóxica.

Letitia 'Leti' Lewis (Jurnee Smollett) é abusada fisicamente e psicologicamente durante toda vida; Diana ‘Dee’ Freeman (Jada Harris) com os traumas que carrega desde a infância, além de representar a esperança da juventude em fazer a diferença; Hippolyta Freeman (Aunjanue Ellis) com a invisibilidade da mulher, perante o marido e à sociedade, provando que a mulher pode e deve ser quem ela quiser; Ruby Baptiste (Wunmi Mosaku) com a emancipação da mulher negra, que flerta com a magia para conseguir usufruir de privilégios que apenas os brancos têm, além de reforçar a discussão sobre gênero; Montrose Freeman, um homem negro gay que teve que se reprimir durante toda vida, usando de violência para tentar reafirmar sua masculinidade e posição como pai; e Atticus Freeman, claro, como o sacrifício negro perante a sociedade.

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Também é importante citar os antagonistas que compõem a opressão contra os negros em tela: Christina Braithwhite (Abbey Lee), que quer se tornar imortal apropriando-se da magia e sacrificando seu último familiar vivo (um homem negro) para isso; além de, obviamente, a polícia de modo geral, representada principalmente na figura do Capitão Seamus Lancaster (Mac Brandt).

Talvez o único defeito da série seja correr demais com o roteiro em alguns episódios, por vezes apresenta soluções simplistas.

“Eu te digo o que a liberdade significa para mim: não ter medo.”
Nina Simone

No momento em que o mundo está tão conturbado politicamente, muitas pessoas afirmam que cultura pop e política não deveriam estar relacionadas. A série vem para ser mais uma prova de que ambos não podem ser desassociados. A cultura pop pode - e deve - gerar discussão sobre diversos aspectos sociopolíticos. 

Com um elenco estelar e uma escrita excepcional, Lovecraft Country é uma aula de representatividade no audiovisual que nos fornece diversas camadas de pensamentos e imagens para gerar reflexões e críticas sociais, culturais e principalmente, raciais sobre a sociedade. Por sua ousadia e criatividade estética e narrativa, pode não ser das mais palatáveis para todo mundo, porém, nunca teve esse desejo. Misha Green criou sua série para falar sobre destino, sacrifício, ancestralidade, reparação e legado da raça negra, e fez isso de maneira inovadora e emocionante durante toda a jornada.


Excelente

   

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