CRÍTICA | Noite Passada em Soho

Direção: Edgar Wright
Roteiro: Krysty Wilson-Cairns
Elenco: Thomasin McKenzie, Anya Taylor-Joy, Matt Smith, Michael Ajao, Diana Rigg, Terence Stamp, entre outros
Origem: Reino Unido / EUA
Ano: 2021

Você já sentiu que nasceu na época errada? Se pudesse escolher viver em outro lugar, em outro momento da história da humanidade, qual seria? Baseado nesse sentimento moderno de nostalgia com o que não se viveu, o cineasta Edgar Wright (Scott Pilgrim Contra o Mundo) lança Noite Passada em Soho (Last Night in Soho).

Para a protagonista Eloise (Thomasin Mckenzie), a resposta é a Londres dos anos 1960. Logo na cena inicial, Wright já nos mostra tudo o que precisamos saber sobre a personagem: Ellie usa um vestido criado por ela mesma, todo feito de jornais, e dança ao som de "A World Without Love", da dupla britânica Peter & Gordon, enquanto imagina ser uma grande estilista, “fumando” seu lápis como Audrey Hepburn, em um quarto repleto de fotos e pôsteres de artistas dos anos dourados.

Apaixonada pelo mundo da moda desde criança e com o desejo de se tornar uma estilista, ela deixa sua pequena cidade no interior da Inglaterra, para estudar em uma prestigiada universidade de Londres. Mas além de sua paixão por moda e por aquela década, a garota tem uma peculiaridade, uma doença mental, além de uma sensibilidade ao sobrenatural, que a fazem enxergar sua falecida mãe.

Quando se muda para a vibrante cidade, passa por uma série de frustrações e percebe que nem tudo corresponde às suas expectativas. Mas, para não decepcionar a sua avó, Peggy (Rita Tushingham), ou a memória de sua mãe, Ellie decide persistir. Ela abandona o cruel grupo de meninas de sua república e se muda para um antigo apartamento no centro de Soho, administrado pela misteriosa Sra. Collins (Diana Rigg).

Universal Pictures

Quando tudo parece se encaixar, a situação se complica quando a protagonista passa a ter vívidos sonhos com a misteriosa Sandie (Anya Taylor-Joy), uma aspirante a cantora, que morava na mesma residência que ela, e pretendia chegar ao estrelato, auxiliada pelo seu agente Jack (Matt Smith). A partir desse momento, a trama passa a transitar entre o passado e o presente, colocando Eloise dentro dos eventos vividos pela misteriosa musa de outra época.

Sandie é tudo o que Ellie gostaria de ser: confiante, ousada e alegre. Então, ela começa a se inspirar naquelas viagens oníricas, se espelhando fortemente na cantora. Inclusive, a maioria das cenas dos sonhos são mostradas através dos espelhos, como se Ellie fosse uma espectadora da vida de Sandie. Então, a aspirante a estilista começa a basear seu trabalho da faculdade nos figurinos que vê a cantora usando em seus sonhos, assim como comprar roupas parecidas com as dela e ouvir as músicas cantadas por ela. Mas esta viagem se torna aterrorizante cedo demais, pois os sonhos começam a virar pesadelos, se aprofundando na podridão da época.

Aos poucos, ela vai descobrindo que a Londres dos anos 1960 não é o que parece, e a trajetória de Sandie começa a tomar consequências sombrias que terão impacto também na vida de Ellie, o que começa a prejudicar o seu estado emocional, já abalado pela perda da mãe. Mas não foi por falta de aviso, pois ao longo da produção, diversos personagens alertam a protagonista que "Londres pode ser difícil". E é mesmo.

Famoso pelo estilo da sua direção, Edgar Wright sempre chamou muita atenção através da originalidade de suas histórias. Em Noite Passada em Soho, ele alerta para o perigo das ilusões e a sensação de prisão que os pesadelos podem causar, tratando dos contrastes entre idealização e realidade, com uma dualidade que acaba se tornando a principal questão do filme.

O diretor recriou o swing de Londres, não só no cenário e no figurino, mas também na arquitetura, decoração, iluminação e, especialmente, na música. Famoso pelo uso das canções como um instrumento na narrativa, como em seu último longa, Em Ritmo de Fuga (2017), o cineasta usa a música não somente para transmitir o clima da cena, mas quase para servir de narração.

Por exemplo, o primeiro retorno ao passado conquista o espectador com brilhantes holofotes, conduzindo-nos por uma deliciosa sequência que homenageia grandes clássicos do passado. Fica clara assim, a lógica da direção de buscar uma artificialização proposital, passando por diferentes gêneros, que variam desde o romance adolescente até o slasher.

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Não só essa é a primeira vez que Wright se aventura pelo gênero horror, como também é o seu primeiro longa protagonizado por uma mulher, ou no caso, duas. O cineasta controla com habilidade as pistas visuais que nos permitem diferenciar o que é presente do que é passado, e aos poucos mistura tudo isso conforme as duas linhas do tempo vão ficando indistinguíveis.

Para contar a história de Eloise e de Sandie, Wright se juntou à roteirista Krysty Wilson-Cairns (1917). Juntos, eles trouxeram uma mistura de referências, todas clareadas por uma chuva de néon, que consegue desenvolver bem os dramas da protagonista, seus medos, sua ambição e também a sua frustração com a cidade grande, fazendo uma visita minuciosa ao passado e resgatando como eram os points mais badalados de Soho. O texto nos conduz por becos sem saída da cidade, como se Ellie vivesse em uma versão mais sombria de Alice no País das Maravilhas.

O roteiro também aborda os julgamentos aos quais às mulheres acabam sendo submetidas, com a intenção de demonstrar o terror feito pelos homens que dilacera o espírito feminino.

Noite Passada em Soho apresenta o masculino predatório, tóxico e sufocante, mostrando o grau de deformação e trauma causados nas mulheres, das pequenas atitudes abusivas, como o assédio do taxista, até as mais repugnantes ações, como o feminicídio. A obra traz cenas que podem ser desconfortáveis para a espectadora desavisada, então fica aqui o alerta de gatilho, pois há momentos fortes de abuso e violência contra a mulher. Contudo, a resolução da história traz um impactante final e um respiro, indo rumo à luz do amanhecer e saindo das sombras do terror psicológico. Brilhantemente, busca unir a comunidade feminina, abraçando-a pelo horror vivido por décadas e décadas, criticando a ainda assustadora realidade onde tais absurdos foram normalizados pela sociedade de modo geral.

Nesta trama, temos como heroínas figuras inesperadas: uma jovem humilde com histórico de doença mental na família e uma aspirante a cantora que faz de tudo para atingir o seu sonho. Ambas são julgadas por forças que não controlam, mas também se recusam a se vitimizar, lutando até o final. Este grito de revolta serve também para vermos que esta história fantástica e alucinada acaba por ter raízes legítimas e reais.

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É um longa que encanta não só por sua construção visual e roteiro, mas também por mérito da carismática dupla de protagonistas. Thomasin McKenzie (Jojo Rabbit) é um talento em ascensão, seja ao criar a doce figura que Eloise apresenta no começo, inocente e admirada, até mesmo na forma como a personagem se vê mudada por essa Londres, enlouquecida e assustada. Já Anya Taylor-Joy (Vidro) é perfeitamente escalada para o papel, trazendo toda a sua sedução e mistério, totalmente hipnotizante em tela, mostrando porque é uma das atrizes mais requisitadas do momento. Já Matt Smith (Doctor Who), é o cruel cafetão Jack, muito bem em seu papel, nos fazendo sentir toda a raiva e frustração que Sandie e Ellie sentem por ele.

Referenciando à cultura pop britânica, Wright também escalou estrelas dos anos 1960, como Rita Tushingham (Doutor Jivago) que interpreta a avó de Ellie, Margaret Nolan (007 Contra Goldfinger) que faz uma atendente do bar onde Ellie trabalha, Terence Stamp (Superman: O Filme) é um homem misterioso que parece ter uma ligação com Sandie, e a saudosa Diana Rigg (Game of Thrones), que em seu último papel interpreta a curiosa dona do apartamento que Ellie aluga.

Desse modo, Noite Passada Em Soho chama a atenção com uma história eficiente e permeada por um belíssimo refinamento estético. Nas mãos de Edgar Wright, um dos diretores mais talentosos de sua geração, é uma fascinante trajetória entre realidade e sonho, executando algo inédito em sua filmografia de forma versátil, mas sem perder a sua identidade.

Ótimo


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