CRÍTICA | Estou Pensando em Acabar com Tudo

Direção: Charlie Kaufman
Roteiro: Charlie Kaufman
Elenco: Jessie Buckley, Jesse Plemons, Toni Collette, David Thewlis, Guy Boyd, entre outros
Origem: EUA
Ano: 2020


Charlie Kaufman é uma mente brilhante do cinema, responsável por roteiros inovadores e desafiadores que exploram o psicológico humano de forma profunda. Grandes cineastas foram responsáveis por dirigir suas histórias e o fizeram muito bem, como Spike Jonze (Ela) em Quero Ser John Malkovich (1999) e Adaptação (2002), ou Michel Gondry (Rebobine, Por Favor) em Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004). Após se estabelecer e ganhar reconhecimento, Kaufman começou a se desafiar como diretor. Sua primeira incursão foi no megalomaníaco Sinédoque, Nova York (2008), para depois co-dirigir a animação existencial Anomalisa (2015). Agora, com Eu Estou Pensando em Acabar com Tudo (I'm Thinking of Ending Things), o diretor adapta um livro bem peculiar, que combina bastante com suas características.

O enredo acompanha uma jovem (Jessie Buckley), que apesar de dúvidas sobre seu relacionamento, faz uma viagem com seu namorado Jake (Jesse Plemons) para a fazenda da família dele. "Presa" no local durante uma nevasca com sua sogra (Toni Collette) e sogro (David Thewlis), a jovem começa a questionar a natureza de tudo que sabia ou entendia sobre seu namorado, o mundo e ela mesma.

“Estou pensando em acabar com tudo. Qual é o sentido de continuar assim? Sei o que é isso e onde vai. Jake é um cara legal, mas isso não vai dar em nada. Já sei disso há um tempo.”

Kaufman parece a pessoa ideal para adaptar o livro Iain Reid, já que, além de ser fã da obra original, a proposta dela se encaixa perfeitamente na linguagem cinematográfica do roteirista/diretor, que gosta de explorar a psique humana, seus medos e ansiedades.

Foto: Mary Cybulski/Netflix

O filme segue uma linha de acontecimentos bem semelhante ao livro. As mudanças notáveis se dão nas cenas na casa dos pais de Jake e também na escola, onde Kaufman faz uma releitura particular, deixando os acontecimentos mais subjetivos e repletos de simbolismo. Assim, talvez o único pecado do longa seja deixar de fora cenas enervantes e assustadoras da obra literária. Apesar disso, as escolhas condizem com a forma de contar histórias do diretor e a escolha para o desfecho.

O roteiro é estruturado como um grande quebra-cabeças, onde o espectador necessita montar peça por peça. E, justamente por isso, exige grande atenção aos detalhes desde o início, já que tudo que é colocado em tela apresenta algum significado, nos ajudando a compreender tudo que está acontecendo.

Jessie Buckley (Chernobyl) está formidável no papel, demonstrando todo o desconforto da personagem em seguir por tal caminho, mesmo considerando acabar com tudo. Ao mesmo tempo representa o olhar do público diante das estranhezas da trama. Jesse Plemons (O Irlandês), por sua vez, surge como um contraposto da personalidade da namorada, parecendo estar buscando algo a todo momento e, conforme a trama se desenrola, sua mente e personalidades vão se tornando mais destrutivas e inexplicáveis.

Toni Collette (Entre Facas e Segredos) e David Thewlis (Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban), apesar de aparecerem pouco, roubam todas as cenas, trazendo uma sensação de estranheza para a obra. Collette, em especial, mostra-se insana. A cena do jantar, construída propositalmente para ser desconfortável, passa a maior sensação de vergonha alheia em muito tempo no cinema.

A cinematografia de Lukasz Zal (Guerra Fria) dribla todo a estranheza proposta pelo roteiro e busca aproximar o espectador dos personagens, refletindo as frias emoções sentidas por eles, como se a todo instante estivessem buscando algo que aqueça seus corações e, assim, suas vidas. Com esse mergulho na mente fragmentada, a trilha sonora de Jay Wadley (O Verão de Adam) também ajuda a criar uma atmosfera hipnótica de ameaça e incerteza constante.

Foto: Mary Cybulski/Netflix

Atenção! A partir daqui a crítica conterá SPOILERS, revelando interpretações sobre o conteúdo e desfecho do filme, também tomando como base o livro.

“– Você pode ficar aqui. Não precisa ir.
– Ir para onde?
– Para a frente.”

O ponto crucial de Estou Pensando em Acabar com Tudo está na percepção de que a protagonista, assim como o restante dos personagens, são construções psicológicas de Jake (que também é o zelador da escola, que somos apresentados paralelamente). Os personagens são apresentados como ele os vê, ou mais importante, como ele deseja que sejam. 

As memórias funcionam na mente de Jake como uma resposta emocional ao passado, mas também influenciando o seu presente, quem ele é hoje, sua posição no mundo e como enxergamos nossa posição no mundo. Por isso, existem diversas mudanças de cores, nomes e personalidades. Tudo reflete e simboliza a maneira que ele se sentiu nas passagens de sua vida, a partir de todas as suas individualidades e características.

É aí que a memória afetiva de suas preferências culturais invadem a tela, com referências sobre literatura, cinema e teatro (musicais) – o cinema de John Cassavetes, a literatura de David Foster Wallace e musicais da Broadway, como Oklahoma!. A própria namorada de Jake também se mostra como uma idealização, com base em experiências que ele teve com as mulheres de sua vida. E, nesse ponto, é interessante como, mesmo sendo uma projeção do namorado, Kaufman faz com que a personagem tenha personalidade e vontades próprias - uma analogia sobre inseguranças de seu idealizador. Entram aqui até referências a Uma Mulher Sob Influência (1974), que trata sobre as dificuldades que enfrenta a mulher moderna, dando um contexto de emancipação feminina que faz a personagem crescer, além de discutir sobre o papel da mulher na sociedade.

“⁠As pessoas pensam em si mesmas como pontos se movendo no tempo. Mas acho que é o contrário. Estamos imóveis, e o tempo passa entre nós soprando como um vento frio.”


O roteiro diz, no fundo, muito sobre qual é a posição de cada um no mundo, nesse caso evidenciada como o não pertencimento. A visão de uma pessoa que tenta seguir, mas não sabe mais como fazê-lo. Mesmo dentro da nossa própria fantasia, não podemos ter tudo o que queremos.

O livro de Iain Reid deixa claro alguns temas que são fundamentais para entender a história e Kaufman, no longa, coloca essas informações de maneira menos óbvia e com mais simbolismos. Nós adentramos a mente de um personagem com saúde mental instável, possivelmente sofrendo de fobia social (ou transtorno de ansiedade social) e transtorno de bipolaridade, e que no fim é dominado por pensamentos suicidas, que dá o verdadeiro significado do título. 

Toda a narrativa criada na mente do zelador são memórias de todo o sofrimento que ele passou com os fracassos acumulados na vida profissional e emocional, misturadas com uma necessidade eterna de ter sido aceito e validado, apenas ter algum amor ou sentimento verdadeiro ao longo de sua trajetória.

O final em aberto estabelecido por Kaufman é um convite para que cada espectador tire suas próprias conclusões e interprete a obra de sua maneira - como fiz nesse texto - podendo ressignificar tudo que lhe foi apresentado. Em entrevista ao IndieWire, Kaufman explicou que não é fã de resolver seus filmes para o público:

“Eu deixo as pessoas terem suas experiências, então eu realmente não tenho expectativas sobre o que vão pensar. Eu realmente apoio a interpretação de qualquer pessoa.” 

Estou Pensando em Acabar com Tudo não é o tipo de filme que vai agradar a todos, muito pelo contrário, será o famoso “ame ou odeie”. Uma obra que não facilita as coisas para o espectador e não segue uma narrativa convencional, mas também por esse motivo, se torna uma das produções mais ousadas ​​e desafiadoras do cinema recente.

Ótimo

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