CRÍTICA | Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis

Direção: Destin Daniel Cretton
Roteiro: Destin Daniel Cretton, Dave Callaham e Andrew Lanham
Elenco: Simu Liu, Tony Leung Chiu-wai, Awkwafina, Michelle Yeoh, Meng'er Zhang, Fala Chen, entre outros
Origem: EUA/Austrália
Ano: 2021

A cada novo personagem que entra como titular para o panteão de heróis trazidos à vida pela Marvel Studios, uma nova mitologia se estabelece, com desafios distintos, monstros específicos e um cenário original. Mas, como todos os filmes solo de origem, também são imediatamente uma incorporação a um grande evento de megaproduções que tecem seu valor pelo que veio antes e pelo que poderá vir a seguir (às vezes, têm seu valor só por meio disso), a dificuldade em integrar cada nova história e protagonista só aumenta. Ocasionalmente, essa vinculação ocorre em detrimento de qualquer senso de identidade própria. Dessa forma é inevitável - e porque o espectador é compelido a isso - julgar a obra por todas as demais ao redor dela.

Essa é a contradição que mora no coração do Universo Cinematográfico da Marvel (MCU) enquanto fenômeno. Quanto mais personalidade e distinção houver em um longa, mais resistência o estúdio e todos os conglomerados que o mobilizam vão oferecer. Mesmo com filmes que se aproximaram de ter uma assinatura autoral (Guardiões da Galáxia, Thor: Ragnarok, Pantera Negra) sendo alguns dos resultados mais bem recebidos do estúdio, o projeto geral de megaevento tem como prioridade reter a expectativa para o que virá a seguir.

Dito isso, onde Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis (Shang-Chi and the Legend of the Ten Rings) entra nesta enorme fila do pão?

Marvel Studios

Shang-Chi tem de contar sua história e apresentar ao público uma versão nova do personagem criado em 1973 nos quadrinhos. Contudo, o longa dirigido por Destin Daniel Cretton (Luta Por Justiça) parece pouco interessado na nova mitologia que se abre. Passamos rapidamente por uma breve contextualização sobre a história de amor dos pais do protagonista, para logo sermos voltados a um cenário urbano e norte-americano como São Francisco e podermos acompanhar Shang-Chi disfarçado como Shaun (Simu Liu), vivendo uma vida simples de manobrista com sua amiga Katy (Awkwafina). A inspiração no Wuxia (gênero fantástico típico da China focado em fantasia e artes-marciais) surge apenas pontualmente, mais como um compilado de breves referências a filmes belíssimos como Herói (2002), do que como fio condutor da trama.

As sequências de luta que surgem desde o início num ritmo frenético são ótimas coreografias, e a direção consegue dar um pouco mais de tempo para que os planos respirem durante a dança de movimentos, mostrando um grau de confiança na execução limpa dos embates. Já na primeira batalha, em um ônibus sem freio, há um encadeamento ótimo de cenas. O problema vai se formando enquanto a obra prossegue e encontra dificuldades para se moldar de fato. A forma como os estilos de luta mais urbanos, interagindo com o ambiente e cercado de movimentações e cortes rápidos, é sucedida por batalhas fluídas e melódicas onde a gravidade é mero detalhe e nunca consegue definir uma unidade clara. É como se houvessem duas propostas estéticas caminhando em paralelo, sem nenhuma mistura orgânica entre elas.

Esse impasse criativo se transpõe para as próprias batidas do roteiro. Uma vez que Shang-Chi é perseguido por agentes de seu pai, ele vai atrás da irmã (Meng'er Zhang) acompanhado de sua sidekick apenas para ser pego numa emboscada familiar. Ao escaparem e conseguirem encontrar a vila mística que sua falecida mãe protegia, o filme estagna completamente, preso entre a tentativa de projetar um senso de perigo e a tentativa de expandir o plano de fundo emocional para o protagonista. Ocorre que a quebra de ritmo compromete o risco vivido pelos personagens e, para preencherem a motivação emocional de Shang-Chi, a quantidade de flashbacks intrusivos passa a aumentar, até mesmo em cenas que se passam no passado, ficando retroativamente maiores para incluir algum discurso necessário no momento exato em que o protagonista precisa dela.

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Os excessos denotam falta de confiança na carga emocional já estabelecida do conflito: a batalha entre um filho que quer honrar sua mãe e enfrentar a tradição representada por seu pai, um homem impactado pelo luto e que destruiu sua relação com os filhos no processo. É em cada luta do momento presente que acompanhamos as batidas emocionais dos personagens e somos convidados a explorar o leque de sentimentos envolvidos - rancor, mágoa, abandono, amor, saudade. Só com o olhar, o antagonista, Xu Wenwu (Tony Leung Chiu-wai), transmite toda uma bagagem de tristeza e desespero, incapaz de aceitar que todo poder acumulado por séculos não lhe serviria para alcançar a única coisa que queria. E é preciso que seu filho o impeça, como não foi capaz de impedir tanta violência que testemunhou enquanto crescia e da qual foi vítima. Então sempre que o longa nos interrompe para ficar se auto justificando com memórias e discursos manjados, ele perde a oportunidade de ser maior ao focar em um universo menor do coração dos envolvidos.

Essa perda de foco culmina em uma batalha final pouco interessante e sem peso para o arco dos personagens, salva apenas por escolhas de imagem instigantes e outras coisas que não vale a pena mencionar para não dar spoilers. Os efeitos especiais sugerem que um tempo mais cuidadoso foi tomado para a finalização. A própria execução dos poderes dos anéis são bem instigantes pela própria versatilidade (podem funcionar como uma rajada, um soco potencializado, uma corda, plataformas voadoras e até um kamehame-ha), mas o momento em que o destino dos artefatos é traçado fica prejudicado, já que o roteiro oferece pouco além de discursos para explicar o acontecimento.

Shang-Chi, enquanto protagonista, mostra pouco de quem é para que sua resolução soe recompensadora. Já a participação da Katy faz pouco sentido além de ser a responsável pelo humor intrometido e irônico protocolar da Marvel Studios, ainda que acabe tendo uma importância acidental ao trazer traços de personalidade ao protagonista, que sozinho pouco nos apresenta. É a interação entre eles, numa dinâmica até bem orgânica e agradável, que dá qualquer forma ao personagem.

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Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis é tolhido em diversos aspectos de alcançar alguma propriedade mais sólida para si mesmo, ainda que contenha momentos isolados divertidos e titubeie um arco dramático mais complexo, mesmo com resoluções fracas. No apanhado geral acaba se saindo um pouco melhor que a média da Marvel Studios, obtendo algum charme próprio, mas ainda refém de uma franquia coorporativa colossal.

Bom



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