CRÍTICA | A Cor Púrpura

Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Menno Meyjes
Elenco: Whoopi Goldberg, Danny Glover, Oprah Winfrey, Margaret Avery, entre outros
Origem: EUA
Ano: 1985


Em 1985, Steven Spielberg (Indiana Jones e o Templo da Perdição) já era um nome consolidado dentro da indústria cinematográfica, responsável por longas como Tubarão (1975), Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), Indiana Jones e os Calçadores da Arca Perdida (1981) e E.T.: O Extraterrestre (1982). Naquele ano, porém, o cineasta resolveu arcar com um novo desafio lançando A Cor Púrpura (The Color Purple), adaptação do livro homônimo da aclamada autora norte-americana Alice Walker. Uma história bem diferente de tudo que o diretor havia entregue até ali.

Uma garota negra, Celie (Desreta Jackson/Whoopi Goldberg), estuprada pelo próprio pai, é obrigada a se casar com um patriarca abusador e pedófilo, Albert (Danny Glover), para poupar a virgindade de sua irmã, Nettie (Akosua Busia). Ela é separada da irmã a força e, desde cedo era obrigada a cuidar da casa e dos filhos do homem, levando uma vida solitária, sendo abusada e explorada pelo “marido”.

O longa gira em torno do crescimento e do amadurecimento de Celie, que narra como se sente e o passar de seus dias para Deus, na falta de ter qualquer apoio que a tire da realidade em que está submersa.

Se hoje temos a certeza de que Spielberg também consegue arcar com histórias de peso dramático, como Império do Sol (1987), O Resgate do Soldado Ryan (1998) e o emblemático A Lista de Schindler (1993), naquela época tratava-se de uma proposta inédita por parte do diretor. E seu trabalho foi tão bem sucedido que lhe rendeu 11 indicações ao Oscar (lamentavelmente sem vencer nenhuma), consolidando-o de vez junto a crítica, uma vez que o público já o amava.

Foto: Amblin Entertainment

A direção característica de Spielberg ajuda a compreensão do espectador ao tentar aliviar as temáticas de abuso sexual e racismo escancarado. Ele dá o tom de sobrevivência, mas nos coloca por trás do senso inocente e passivo de Celie. Esse contraste engrandece a história que está sendo contada, já que a identidade da garota está presente a todo instante. Isso se intensifica com o design de produção de Bo Welch (A Princesinha) e com a cinematografia de Allen Daviau (Bugsy). Ambos valorizam as cores, principalmente nas cenas em áreas externas, fazendo com que cada frame possa facilmente ser colocado em quadro.

As fortes atuações dão vida a esses belos cenários. O trabalho de Whoopi Goldberg (Ghost: Do Outro Lado da Vida) como Celie é espetacular. A atriz, através de sua postura corporal e olhares, consegue passar ao público o amadurecimento da personagem ao longo de toda a obra. Já Oprah Winfrey (Selma: Uma Luta Pela Igualdade) impressiona como a destemida Sofia, que toma o caminho contrário de Celie e é “colocada em seu devido lugar” quando se recusa a ser empregada de uma mulher branca. Ela inicia o filme como uma das forças femininas que se tornam exemplares para o crescimento da protagonista; e é de partir o coração a maneira como Oprah consegue fazer com que Sofia se diminua para “não se meter em problemas”.

A atuação incômoda e presunçosa de Danny Glover (Máquina Mortífera) também merece destaque, já que o ator é responsável pelo retrato de um homem capaz de causar tamanho sofrimento em alguém. Glover transpassa a crueldade e superioridade que Albert sente, mas também a maneira como é totalmente dependente da mulher que menospreza.

Mesmo com toda a tensão, A Cor Púrpura tem seus momentos de esperança e glória. Muitos deles são guiados pela trilha sonora composta pelo renomado produtor musical Quincy Jones (Quincy). É interessante como quanto mais próxima Celie está de seu amadurecimento, mais a sonoridade se encorpa e vai ganhando negritude, seja ao incorporar a música gospel ou ao introduzir sonoridades tipicamente africanas. 

Foto: Amblin Entertainment

Na última década, Hollywood recebeu dois exemplos de como certos filmes com temática racial, se parados nas mãos erradas, podem se tornar completamente desastrosos ou, mais tarde, podem ser resignificados. É o caso, por exemplo, de Histórias Cruzadas (2011) e, mais recentemente, Green Book: O Guia (2018), por escancararem o significado do white savior - ou seja, o personagem branco que é levado como “herói salvador” por motivações que, no fim, condizem apenas a ele, e não à pessoa de uma minoria que ele está “salvando”.

Não é o caso de A Cor Púrpura, que é mencionada como uma adaptação respeitosa e que mantém o cerne da história narrada por Alice Walker em seu livro. Spielberg conduziu a obra de maneira crível e sem apelações ou sensacionalismos, imprimindo a realidade retratada misturando sublimidade, delicadeza, força e sofrimento. Créditos compartilhados com o roteirista Menno Meyjes (O Príncipe do Deserto), responsável pela adaptação.

De certa forma, a falta de pertencimento e a falta de alternativas para Celie, além da maneira como foi separada de sua irmã Nettie, remetem às diásporas africanas, em que famílias foram separadas na África para serem levadas aos outros continentes para, então, serem escravizadas. Mesmo a história se passando na primeira metade do século 19, em uma “América” pós-abolição da escravidão, é este mesmo enredo que Celie segue: desde garota é violentada, trocada e explorada à exaustão, longe de suas raízes e de qualquer traço que remeta à sua real identidade. 

O que acalanta em A Cor Púrpura é esse verso sobre a esperança do reencontro com as origens, da libertação após tantos anos sofridos e do encontro dentro de si mesma, mesmo em meio ao sofrimento. Além disso, é muito bom termos em Hollywood um enredo que conte a história das pessoas negras que ascendem por elas próprias, sem “brancos salvadores”, sem apagamentos e sem medo de colocar o dedo na ferida.

Ótimo

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